Hebreus e o trabalho
Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do TrabalhoIntrodução a Hebreus
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Hebreus oferece uma base profunda para a compreensão do valor do trabalho no mundo. Oferece ajuda prática para superar o mal no trabalho, desenvolver um ritmo de trabalho e descanso, servir as pessoas com quem trabalhamos, suportar dificuldades, trazer paz ao ambiente de trabalho, perseverar por longos períodos, oferecer hospitalidade, cultivar uma atitude estimulante em relação ao dinheiro e encontrar fidelidade e alegria em locais de trabalho em que o amor de Cristo parece muitas vezes escasso.
O livro é baseado em uma mensagem essencial: Ouça Jesus! Alguns crentes estavam se sentindo pressionados a desistir do Messias e voltar para a antiga aliança. Hebreus os lembra de que Jesus, o Rei, por meio de quem o mundo foi criado, é também o Sumo Sacerdote consumado nas regiões celestiais, que iniciou um novo e melhor pacto, com consequências concretas na terra. Ele é o sacrifício final pelo pecado e o intercessor final por nós na vida diária. Não devemos buscar salvação em nenhum outro lugar, mas apenas confiar em Cristo e viver em obediência até que ele nos leve à cidade transformada e renovada de Deus. Lá encontraremos o descanso sabático eterno, que não é a cessação do trabalho, mas a perfeição do ciclo de trabalho e descanso pretendido por Deus nos sete dias da criação.
Cristo criou o mundo e o sustenta (Hb 1.1—2.8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm ponto crítico para a teologia em Hebreus é que Cristo criou o mundo e o sustenta. Ele é o Filho “por meio de quem [Deus] fez o universo” (Hb 1.2). Portanto, Hebreus é um livro sobre Cristo, o criador, trabalhando em seu local de trabalho, a criação. Isso pode ser surpreendente para quem esteja acostumado a pensar somente no Pai como criador. Mas Hebreus é consistente com o restante do Novo Testamento (por exemplo, Jo 1.3; Cl 1.15-17) ao nomear Cristo como o agente do Pai na criação. [1] Como Cristo é plenamente Deus, “o resplendor da glória de Deus, a expressão exata do seu ser” (Hb 1.3), o escritor de Hebreus pode se referir indistintamente a Cristo ou ao Pai como o Criador.
Como, então, Hebreus retrata a ação de Cristo na criação? Ele é um construtor, que funda a terra e constrói os céus. “No princípio, Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos” (Hb 1.10). Além disso, ele mantém a criação atual, sustentando “todas as coisas por sua palavra poderosa” (Hb 1.3). “Todas as coisas”, é claro, também nos inclui: “toda casa é edificada por alguém, mas Deus é aquele que edificou tudo [...]; essa casa somos nós, se é que nos apegamos firmemente à confiança e à esperança gloriosa” (Hb 3.4, 6). Toda a criação é edificada por Deus por meio de seu Filho. Isso confirma fortemente que a criação é o lugar principal da presença e da salvação de Deus.
A imagem de Deus como obreiro continua em Hebreus. Ele montou ou armou o tabernáculo celestial (Hb 8.2; por implicação, Hb 9.24), construiu um modelo ou uma planta para o tabernáculo de Moisés (Hb 8.5) e projetou e construiu uma cidade (Hb 11.10, 16; 12.22; 13.14). Ele é o juiz em um tribunal, bem como o algoz (Hb 4.12-13; 9.28; 10.27-31; 12.23). Ele é um líder militar (Hb 1.13), um pai (Hb 1.5; 5.8; 8.9; 12.4-11), um senhor que arruma sua casa (Hb 10.5), um lavrador (Hb 6.7-8), um escriba (Hb 8.10), um tesoureiro (Hb 10.35; 11.6) e um médico (Hb 12.13). [2]
É verdade que Hebreus 1.10-12, citando o salmo 102, aponta um contraste entre o Criador e a criação:
No princípio, Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles envelhecerão como vestimentas. O Senhor os enrolará como um manto; como roupas eles serão trocados. Tu, porém, permaneces o mesmo, e os teus anos jamais terão fim.
Isso está muito de acordo com a ênfase na natureza transitória da vida neste mundo e a necessidade de buscar a cidade duradoura dos novos céus e da nova terra. Ainda assim, a ênfase de Hebreus 1.10-12 está no poder do Senhor e na libertação que ele proporciona, e não na fragilidade do cosmos. [3] O Senhor está trabalhando na criação.
Os seres humanos não são apenas produtos da criação de Deus, também somos subcriadores (ou cocriadores, se você preferir) com ele. Como seu Filho, somos chamados à obra de ordenar o mundo. "Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste com glória e com honra; sujeitaste todas as coisas debaixo dos seus pés” (Hb 2.6-8, citando Sl 8). [4] Se parece um pouco presunçoso considerar meros seres humanos participantes da obra da criação, Hebreus nos lembra: “Jesus não se envergonha de chamá-los irmãos” (Hb 2.11).
Portanto, nosso trabalho deve ser semelhante à obra de Deus. Ela tem um valor eterno. Quando fabricamos computadores, aviões e camisas, vendemos sapatos, fazemos empréstimos, colhemos café, criamos filhos, governamos cidades, províncias e nações ou fazemos qualquer tipo de trabalho criativo, estamos trabalhando ao lado de Deus em sua obra de criação.
O ponto é que Jesus é o supremo responsável pela criação, e somente trabalhando nele somos restaurados à comunhão com Deus. Só isso nos torna capazes de assumir novamente nosso lugar como vice-regentes de Deus na terra. O destino criado da humanidade está sendo alcançado em Jesus, em quem encontramos o padrão (Hb 2.10; 12.1-3), a provisão (Hb 2.10-18), o fim e a esperança para todo o nosso trabalho. No entanto, fazemos isso em uma época marcada pela frustração e pela ameaça da morte, cuja falta de sentido oferece risco a nossa própria existência (Hb 2.14-15). Hebreus reconhece que “ainda não vemos todas as coisas sujeitas” aos caminhos de seu reino (Hb 2.8). No momento, o mal desempenha um forte papel.
Tudo isso é crucial para entender o que Hebreus dirá mais tarde sobre o céu e “o mundo que há de vir” (Hb 2.5). Hebreus não está contrastando dois mundos diferentes — um mundo material ruim com um mundo espiritual bom. Pelo contrário, reconhece que a boa criação de Deus ficou sujeita ao mal e, portanto, precisa de uma restauração radical para voltar a se tornar totalmente boa. Todas as coisas da criação — não apenas almas humanas — estão em processo de remissão através de Cristo. “Ao lhe sujeitar [aos seres humanos] todas as coisas, nada deixou que não lhe estivesse sujeito” (Hb 2.8).
A criação ficou sujeita ao mal (Hb 2.14—3.6)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora Cristo tenha criado o mundo inteiramente bom, ele foi contaminado por e sujeito àquele “que tem o poder da morte, isto é, o Diabo” (Hb 2.14). O escritor de Hebreus diz pouco sobre como isso aconteceu, mas fala longamente sobre como Deus está trabalhando para “aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte ”, a saber, “os descendentes de Abraão” (Hb 2.15-16); isso significa ambos os descendentes de Abraão, tanto por meio de Isaque (os judeus) quanto por Ismael (os gentios) — ou seja, todos. A pergunta feita por Hebreus é: como Deus libertará a humanidade do mal, da morte e do diabo? A resposta é, por meio de Jesus Cristo, o grande sumo sacerdote.
Exploraremos o sacerdócio de Jesus com maior profundidade quando nos voltarmos para os capítulos centrais do livro (Hb 5—10). Por enquanto, simplesmente observamos que os capítulos iniciais do livro enfatizam que a obra criativa de Jesus e a obra sacerdotal não estão isoladas uma da outra. Hebreus reúne ambas: “Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos” (Hb 1.10), e “para que, por meio da morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo” (Hb 2.14). Isso nos diz que Cristo é o agente de Deus tanto da criação original quanto da obra de redenção. A obra da criação de Cristo o leva, após a Queda, a libertar “aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados” (Hb 2.15) e a “oferecer um sacrifício de expiação pelos pecados do povo” (Hb 2.17).
Sabemos muito bem quão distante está nosso ambiente de trabalho da intenção original de Deus. Alguns trabalhos existem principalmente porque precisamos conter o mal que agora infesta o mundo. Precisamos de polícia para conter criminosos, de diplomatas para restaurar a paz, de profissionais de saúde para curar doenças, de evangelistas para chamar as pessoas de volta a Deus, de oficinas mecânicas para reparar sinistros, de jornalistas investigativos para descobrir corrupção e de engenheiros para reconstruir pontes deterioradas. E todo ambiente de trabalho sofre muito com a queda. Má administração, disputas trabalhistas, fofocas, assédio, discriminação, preguiça, ganância, falta de sinceridade e uma série de outros problemas, grandes e pequenos, que impede nosso trabalho e nossos relacionamentos a cada passo. A solução de Deus não é abandonar sua criação ou evacuar os seres humanos dela, mas transformá-la totalmente, recriá-la em sua bondade essencial. Para isso, ele envia seu Filho a fim de encarnar no mundo, assim como ele foi o criador do mundo. No ambiente de trabalho, nos tornamos “santos irmãos, participantes do chamado celestial” de Cristo (Hb 3.1) para sustentar e restaurar sua criação. Isso não substitui o trabalho criativo que começou no Jardim do Éden, mas o tempera e incrementa. As obras criativa e redentora ocorrem lado a lado e estão entrelaçadas até a volta de Cristo e a extinção do mal.
O descanso sabático em Cristo: necessário para a jornada da vida (Hb 3.7—4.16)
Voltar ao índice Voltar ao índicePor mais que a criação seja, portanto, a boa obra de Deus em Cristo, ainda há um forte contraste entre o mundo quebrado de hoje e o mundo glorioso por vir. Em Hebreus 2.5, o autor descreve seu tópico principal como “o mundo que há de vir, a respeito do qual estamos falando”. Isso sugere que o foco principal em todo o livro é a criação aperfeiçoada por Deus na consumação de todas as coisas, o que é confirmado pela longa discussão sobre o “descanso sabático”, que domina os capítulos 3 e 4.
Ao longo do livro, Hebreus frequentemente toma um texto do Antigo Testamento como ponto de partida. Neste caso, ele se baseia na história do Êxodo para destacar a ideia do descanso sabático. Como Israel no Êxodo, o povo de Deus está em peregrinação rumo ao lugar prometido da salvação. No caso de Israel, foi Canaã. No nosso caso, é a criação aperfeiçoada. O descanso sabático em Hebreus 4.9-10 não é simplesmente uma cessação de atividade (Hb 4.10), mas também uma celebração sabática (Hb 12.22). [1] Continuando com a história do Antigo Testamento, Hebreus considera a conquista da terra sob Josué mais um sinal indicativo de nosso descanso final no mundo vindouro. O descanso de Josué é incompleto e precisa do cumprimento que ocorre somente por meio de Cristo. “Porque, se Josué lhes tivesse dado descanso, Deus não teria falado posteriormente a respeito de outro dia” (Hb 4.8).
Pelo menos duas coisas cruciais decorrem disso. Primeiro, a vida no mundo atual envolverá trabalho árduo. Isso está implícito na ideia de jornada, que é essencial para a história de Êxodo. Todos os que já viajaram sabem que qualquer jornada envolve uma quantidade imensa de trabalho. Hebreus usa o motivo do sábado para descrever não apenas o descanso, mas também o trabalho que o envolve. Você trabalha seis dias e depois descansa. Da mesma forma, você trabalha arduamente em Cristo durante sua jornada de vida e depois, quando o reino de Deus é cumprido, descansa em Cristo. É claro que Hebreus não está sugerindo que você não faça nada a não ser trabalho — como veremos em breve, também há momentos de descanso. Tampouco está dizendo que a atividade se encerra quando o reino de Cristo se completa. O ponto é que os cristãos têm trabalho a fazer aqui e agora. Não devemos nos jogar no deserto, levantar os pés e esperar que Deus apareça e torne nossa vida perfeita. Deus está trabalhando por meio de Cristo para trazer este mundo quebrado de volta ao que ele pretendia para o mundo no princípio. Temos o privilégio de ser convidados a participar desse grande trabalho.
O segundo ponto diz respeito ao descanso sabático semanal e à adoração. É importante notar que o autor de Hebreus não aborda a questão do sábado semanal para atestá-lo ou condená-lo. É provável que ele presumisse que seus leitores observariam o sábado de alguma forma, mas não podemos ter certeza. Em Hebreus, o valor do descanso semanal é governado por suas consequências para o reino vindouro. O descanso agora nos conecta mais profundamente à promessa de Deus de descanso futuro? Isso nos sustenta na jornada da vida? Guardar o sábado agora é um ato de fé em que celebramos a alegria de saber que será cumprido na eternidade? Certamente parece que algum tipo de descanso sabático (independentemente de como será implementado em qualquer comunidade) seria a maneira ideal de nos lembrar de que o trabalho não é um ciclo interminável de atividade árdua que não leva a lugar algum, mas sim uma atividade proposital pontuada por adoração e descanso.
Vista sob essa luz, nossa rotina semanal de trabalho — os seis dias, assim como um — pode se tornar um exercício de consciência espiritual. Quando sentimos a mordida da maldição no trabalho (Gn 3.16-19) por meio de colapsos econômicos, má gestão, colegas de trabalho fofoqueiros, membros da família ingratos, pagamento inadequado e coisas do gênero, lembramo-nos de que a casa de Deus foi gravemente danificada por seus inquilinos humanos, e ansiamos por sua restauração completa. Quando o trabalho vai bem, lembramo-nos de que a criação de Deus, e nosso trabalho nela, é uma coisa boa e que, em certa medida, nosso bom trabalho está promovendo os propósitos dele para o mundo. E, no sabático, reservamos um tempo para adoração e descanso.
Nosso Grande Sumo Sacerdote (Hb 5.1—10.18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA seção central de Hebreus é dominada pelo tema de Jesus como nosso grande sumo sacerdote. Tomando o salmo 110 como guia, o autor de Hebreus argumenta que o Messias estava destinado a ser “sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 5.6), e que esse sacerdócio é superior ao sacerdócio levítico, que supervisionava a vida religiosa de Israel. De acordo com Hebreus, o antigo sacerdócio, sob a antiga aliança, não podia genuinamente tirar pecados, mas apenas lembrar o povo de seus pecados por meio dos intermináveis sacrifícios oferecidos por sacerdotes imperfeitos e mortais. O sacerdócio de Jesus oferece um sacrifício definitivo para todos os tempos e nos oferece um mediador que vive para interceder por nós sempre. Destacaremos aqui as implicações desses dois temas, sacrifício e intercessão, na realização de nosso trabalho.
O sacrifício de Cristo torna possível nosso serviço (Hb 5.1—7.28)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJesus, por meio de seu autossacrifício, conseguiu eliminar o pecado humano para sempre. “Depois que Jesus acabou de oferecer um único sacrifício pelos pecados [...], se assentou à direita de Deus. [...] Porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que têm sido santificados” (Hb 10.12, 14). “Ao contrário dos outros sumos sacerdotes, ele não tem necessidade de oferecer sacrifícios dia após dia, primeiro por seus próprios pecados e, depois, pelos pecados do povo. Ele o fez de uma vez por todas quando ofereceu a si mesmo” (Hb 7.27). Essa expiação completa pelo pecado é frequentemente chamada “a obra de Cristo”.
Pode parecer que o perdão dos pecados é um assunto puramente religioso ou espiritual, sem implicações para o trabalho, mas isso está longe da verdade. Pelo contrário, o sacrifício definitivo de Jesus promete libertar os cristãos para viverem uma existência de serviço apaixonado a Deus em todas as esferas da vida. O texto destaca as consequências éticas — isto é, práticas — do perdão em Hebreus 10.16: “Porei as minhas leis no coração deles e as escreverei na sua mente”. Em outras palavras, nós, que somos perdoados, desejaremos fazer a vontade de Deus (no coração) e receberemos sabedoria, visão e capacidade para fazê-lo (na mente).
Como isso acontece? Muitas pessoas encaram as atividades da igreja mais ou menos da mesma forma que alguns israelitas encaravam os rituais da antiga aliança. Essas pessoas acreditam que, se quisermos ficar do lado de Deus, precisaremos exibir algumas práticas religiosas, já que esse parece ser o tipo de coisa em que Deus está interessado. Ir à igreja é uma maneira agradável e fácil de atender ao requisito, embora a desvantagem seja que precisamos fazer isso toda semana, para que a “mágica” não se desfaça. A suposta boa notícia é que, uma vez cumpridas nossas obrigações religiosas, ficamos livres para cuidar dos negócios sem nos preocuparmos muito com Deus. Não faremos nada hediondo, é claro, mas estaremos basicamente por nossa conta até que enchamos o tanque com o favor de Deus ao irmos à igreja novamente na semana seguinte.
O livro de Hebreus destrói essa visão de Deus. Embora o sistema levítico fizesse parte dos bons propósitos de Deus para seu povo, ele sempre teve a intenção de apontar além de si mesmo, para o futuro e definitivo sacrifício de Cristo. Não era um dispensário de favores mágicos, mas um cantil para a viagem. Agora que Cristo veio e se ofereceu em nosso favor, podemos experimentar diretamente o genuíno perdão dos pecados por meio da graça de Deus. Não há mais sentido em fazer rituais perpétuos de purificação. Não temos tanques que precisem ser — ou possam ser — enchidos com o favor de Deus por meio de atividades religiosas. Confiando em Cristo e em seu sacrifício, estamos bem com Deus. Hebreus 10.5 esclarece da melhor forma possível: “Por isso, quando Cristo veio ao mundo, disse: ‘Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo me preparaste’” (Hb 10.5).
Nada disso, é claro, significa que os cristãos não devam ir à igreja ou que os rituais não tenham lugar no culto cristão. O crucial, porém, é que o sacrifício consumado de Cristo significa que nossa adoração não é um exercício religioso autônomo, isolado do resto de nossa vida. Ao contrário, trata-se de um “sacrifício de louvor” (Hb 13.15) que revigora nossa conexão com o Senhor, purifica nossa consciência, santifica nossa vontade e, assim, nos liberta para servir a Deus todos os dias, onde quer que estejamos.
Somos santificados para o serviço. “Eu vim para fazer a tua vontade, ó Deus”, diz Cristo (Hb 10.7). O serviço é o resultado inevitável do perdão de Deus. “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu de forma imaculada a Deus, purifica a nossa consciência de atos que conduzem à morte, para que sirvamos ao Deus vivo!” (Hb 9.14). [1]
Ironicamente, então, o foco na obra celestial e sacerdotal de Cristo deve nos levar a prestar um tremendo serviço prático e terreno. O sacrifício oferecido por Cristo, que leva, em última análise, à renovação do céu e da terra (Hb 12.26; veja também Ap 21.1), foi realizado aqui na terra. Da mesma forma, nosso serviço é realizado aqui, na agitação da vida cotidiana. Mas caminhamos e trabalhamos neste mundo com a confiança de que Jesus partiu antes de nós e completou a mesma jornada em que estamos. Isso nos dá confiança de que nosso trabalho para ele em todas as áreas da vida não será em vão.
A intercessão de Jesus capacita nossa vida e obra (Hb 7.1—10.18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs sacerdotes no antigo Israel não apenas ofereciam sacrifícios pelo povo, mas também faziam orações de intercessão. Assim, Jesus ora por nós diante do trono de Deus (Hb 7.25). “[Jesus] é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus, pois vive sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). “[Jesus] entrou nos céus, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor” (Hb 9.24). Precisamos que Jesus esteja “sempre” intercedendo na presença de Deus em nosso favor, porque continuamos a pecar, falhamos e nos desviamos. Nossas ações depõem contra nós diante de Deus, mas as palavras de Jesus sobre nós são palavras de amor diante do trono de Deus.
Em termos de ambiente de trabalho, imagine o medo que um jovem engenheiro pode sentir quando é chamado para conhecer o chefe do departamento estadual de estradas de rodagem. O que ele dirá ao chefe? Ao reconhecer que o projeto em que trabalha está atrasado e acima do orçamento, ele fica ainda mais receoso. Mas então ele fica sabendo que seu supervisor, um mentor querido, também estará na reunião. E acontece que seu supervisor é um grande amigo do chefe do departamento de estradas de rodagem, desde a época da universidade. “Não se preocupe”, garante o mentor ao engenheiro, “eu cuido das coisas”. O jovem engenheiro não se sentirá muito mais confiante para aproximar-se do chefe na presença de um amigo do chefe?
Hebreus enfatiza que Jesus não é apenas um sumo sacerdote, mas também um sumo sacerdote que se solidariza conosco. “Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, ainda que sem pecado” (Hb 4.15). Para voltar a um versículo que discutimos anteriormente, Jesus fala a Deus do “corpo [que] me preparaste” (Hb 10.5). Cristo veio em um corpo humano genuíno e abraçou verdadeiramente a vida como um de nós.
Para ser um sumo sacerdote fiel, argumenta o autor, Jesus precisa ser capaz de compreender os sentimentos do povo. Ele não pode fazê-lo se não tiver experimentado as mesmas coisas que eles experimentaram. E, assim, ele declara com muito cuidado que Jesus aprendeu obediência. “Embora fosse Filho, ele aprendeu a obediência por meio daquilo que sofreu” (Hb 5.8). Isso não significa, é claro, que Jesus teve de aprender, como nós, a obedecer, ou seja, deixando de desobedecer a Deus. Significa que ele precisava experimentar sofrimento e tentação em primeira mão para qualificar-se como sumo sacerdote. Outros versículos mostram o mesmo ponto, em linguagem igualmente expressiva, que os sofrimentos de Jesus o aperfeiçoaram (Hb 2.10; 5.9; 7.28). O significado pleno de “perfeito” não é apenas “impecável”, mas também “completo”. Jesus já era impecável — mas para ser qualificado como nosso sumo sacerdote, ele precisava desses sofrimentos para completá-lo para o trabalho. De que outra forma ele poderia se relacionar genuinamente conosco, enquanto lutamos neste mundo, dia após dia?
O mais encorajador aqui é que esse sofrimento e esse aprendizado ocorreram no cenário de trabalho de Jesus. Ele não vem como um tipo de antropólogo teológico que “aprende” sobre o mundo de maneira imparcial e clínica, ou como um turista que passa por lá para uma visita. Em vez disso, ele se entrelaça no tecido da vida humana real, incluindo o trabalho humano real. Quando enfrentamos dificuldades no trabalho, podemos recorrer ao nosso compreensivo sumo sacerdote com a plena certeza de que ele sabe em primeira mão o que estamos passando.
A realização da fé (Hb 10.19—11.40)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSeguir Jesus é um trabalho árduo, e somente a fé no cumprimento de suas promessas pode nos manter firmes. “Ora, a fé é a confiança daquilo que esperamos e a certeza das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Precisamos ter fé na veracidade das promessas feitas por Deus, por mais improváveis que possam parecer nas circunstâncias atuais. Uma tradução mais precisa desse versículo nos ajuda a ver a importância prática da fé. “Ora, a fé é a realização das coisas que se esperam, a prova de coisas que não se veem”. [1] “Realização” é particularmente apropriado aqui, porque as diversas acepções dessa palavra capturam perfeitamente as nuances dos exemplos de fé dados em Hebreus 11. Quando enfim vemos as coisas com clareza, essa é uma forma de realização. Finalmente entendemos. Mas a segunda forma de realização é ver as coisas se tornarem reais, quando o que esperávamos finalmente se tornar realidade. Os heróis da fé em Hebreus 11 percebem isso de ambas as maneiras. Retomando a segunda metade do versículo, eles estão tão convencidos do que Deus disse que provam isso por suas ações.
Hebreus nos apresenta os exemplos práticos de Noé, Abraão, Moisés e outros do Antigo Testamento. Todos eles estavam ansiosos pelo cumprimento da promessa de Deus, por algo melhor do que sua experiência atual. Noé tinha fé no mundo justo além do dilúvio, e percebeu que fé significava construir uma arca para salvar sua casa (Hb 11.7). Abraão tinha fé no reino vindouro (ou “cidade”) de Deus (Hb 11.10), e percebeu que fé significava partir em uma jornada para a terra que Deus lhe havia prometido, mesmo que ele não soubesse para onde se dirigia (Hb 11.8-12). Moisés tinha fé em uma vida em Cristo que superava muito os prazeres que ele poderia ter reivindicado como filho da filha de Faraó, e percebeu que fé significava preferir “ser maltratado com o povo de Deus a desfrutar o prazer transitório do pecado”(Hb 11.25-26). Essas esperanças e promessas não foram completamente cumpridas na vida deles, mas viveram todos os dias como se já estivessem experimentando o poder de Deus para cumpri-las.
Esse tipo de fé não é ilusão. É levar a sério a autorrevelação de Deus nas Escrituras (Hb 8.10-11), combinada com um “ arrependimento de atos que conduzem à morte” (Hb 6.1), perseverança em “amor” e “boas obras” (Hb 10.24) e uma capacidade de ver a mão de Deus em ação no mundo (Hb 11.3), apesar do mal e do quebrantamento ao nosso redor. Em última análise, a fé é um dom do Espírito Santo (Hb 2.4), pois nunca poderíamos nos apegar a ela por nossa própria força de vontade.
Essa foi uma mensagem crucial para o público de hebreus, que foi tentado a jogar fora sua esperança em Cristo em troca de uma vida mais confortável, no aqui e agora. Seus olhos não estavam fixos na glória futura, mas na privação presente. A palavra de exortação do livro é que as promessas de Deus são mais duradouras, mais gloriosas e, de fato, mais reais que os prazeres fugazes do aqui e agora.
Se quisermos perceber a fé que Deus nos deu, temos de trabalhar em meio à tensão entre a promessa de Deus para o futuro e as realidades atuais. Por um lado, devemos reconhecer plenamente a natureza provisória e finita de tudo o que fazemos. Não ficaremos surpresos quando as coisas não saírem como esperávamos. “Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé. No entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido” (Hb 11.39). Surgem situações em que nossos melhores esforços para fazer um bom trabalho são frustrados não apenas pelas circunstâncias, mas também por atos deliberados de seres humanos. Isso pode nos causar tristeza, mas não nos levará ao desespero, porque temos os olhos fixos na cidade vindoura de Deus.
Às vezes, nosso trabalho é frustrado por nossa própria fraqueza. Ficamos aquém do alvo. Considere a lista de nomes em Hebreus 11.32. Quando lemos suas histórias, vemos claramente os próprios fracassos, às vezes fracassos significativos. Se lermos sobre a timidez de Baraque como general (Jz 4.8-9) através de olhos humanos, provavelmente não veremos fé alguma. No entanto, Deus vê a fé de Baraque através dos olhos de Deus e credita o trabalho dele pela graça divina, não pela realização dele. Isso pode animar-nos quando também tropeçamos. Podemos ter falado duramente com um colega de trabalho, agido impacientemente com um aluno, ignorado nossa responsabilidade com a família e realizado mal o trabalho. Mas temos fé de que Deus é capaz de realizar sua intenção para o mundo, mesmo em meio a nossas fraquezas e fracassos.
Por outro lado, precisamente porque temos os olhos voltados para a cidade vindoura de Deus, procuramos viver de acordo com os caminhos dessa cidade, da melhor forma possível, em todos os aspectos da vida e do trabalho diários. Os heróis da fé em Hebreus realizaram sua fé em todos os tipos de locais de trabalho. Eles eram pessoas “os quais, pela fé, conquistaram reinos, praticaram a justiça, alcançaram o cumprimento de promessas, fecharam a boca de leões, apagaram o poder do fogo e escaparam do fio da espada; da fraqueza tiraram força, tornaram-se poderosos na batalha e puseram em fuga exércitos estrangeiros” (Hb 11.33-34).
Imagine um empreiteiro — uma ilustração adequada para um livro que trata da construção da casa cósmica de Deus. O contratante tem uma visão clara da vida no reino vindouro de Deus. Ele sabe que será caracterizada por justiça, relacionamentos harmoniosos e beleza duradoura. Como pessoa de fé, ele procura perceber essa visão no presente. Administra as matérias-primas da terra na construção da casa, criando um lar de beleza, mas não de opulência esbanjadora. Trata seus obreiros com a preocupação e o respeito que serão característicos da futura cidade de Deus. Mostra amor celestial a seus clientes, ouvindo suas esperanças para o lar terreno, tentando realizar essas esperanças dentro das restrições financeiras e materiais. Persevera em meio aos problemas, quando o radiador antigo é cinco centímetros maior que o necessário para o banheiro, ou quando um carpinteiro corta uma viga cara dois centímetros mais curta. Ele aceita que um terremoto ou um furacão pode destruir todo o seu trabalho em minutos, mas se dedica inteiramente ao trabalho. Em meio às alegrias e às frustrações, deseja viver os valores da cidade de Deus, mostrando amor consistente aos outros na qualidade de seus relacionamentos pessoais e na qualidade das casas que constrói. Ele confia que todo edifício, por mais frágil e imperfeito que seja, é uma testemunha diária da grande cidade que virá, “cujo arquiteto e construtor é Deus” (Hb 11.10).
Persevere nas dificuldades e busque a paz (Hb 12.1-16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceHebreus deixa de fornecer exemplos de santos fiéis para oferecer desafios para as pessoas de sua época. Como o restante do Novo Testamento, Hebreus descreve a vida cristã como cheia de dificuldades. Devemos suportá-las como medida da disciplina paternal de Deus. Por meio delas, passamos a compartilhar da santidade e da justiça de Cristo. Assim como o Filho foi disciplinado e aperfeiçoado (Hb 5.7-10), os filhos e filhas de Deus passam pelo mesmo processo.
A coisa mais comum do mundo é interpretarmos as dificuldades como castigo divino. Aqueles que se opõem a nós podem até enxergar assim, lançando-nos no rosto nossos pecados e falhas muito reais. Mas Hebreus nos lembra de que não há punição para aqueles que foram perdoados por meio do sacrifício todo-suficiente e único de Cristo. “Assim, já que esses pecados são perdoados, não há mais necessidade de sacrifício por eles” (Hb 10.18). Nosso amoroso Pai nos disciplinará (Hb 12.4-11), mas disciplina não é punição (1Co 11.32). É um treinamento árduo, mas ainda assim uma forma de amor: “Pois o Senhor disciplina a quem ama” (Hb 12.6). Que ninguém finja interpretar nossas dificuldades como um castigo de Deus. “Deus, porém, nos disciplina para o nosso bem, para que participemos da sua santidade” (Hb 12.10).
Mas essa disciplina não é apenas para o benefício pessoal. Hebreus prossegue exortando os seguidores de Jesus a que “busquem a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”. A “paz” da qual Hebreus 12.14 fala é a noção completa do termo hebraico shalom, que transmite um estado último de justiça e prosperidade, compartilhado por toda a comunidade. É o objetivo final da salvação. Ela é capturada de outra maneira, mais adiante no capítulo, com as imagens da cidade santa e celestial de Sião (Hb 12.22-24).
Sabemos como é difícil suportar dificuldades e buscar a paz no trabalho. Tendo recebido as promessas de Deus, naturalmente esperamos que elas tornem nosso trabalho mais agradável de imediato. Queremos ser frutíferos, multiplicar riquezas e ganhar autoridade — todas as coisas boas aos olhos de Deus (Gn 1.28) — e desfrutar de amizades (Gn 2.18) no trabalho e por meio dele. Se, em vez disso, encontrarmos dificuldades, problemas financeiros, falta de poder e hostilidade por parte de colegas de trabalho, a perseverança pode ser a última coisa em nossa mente. Pode parecer muito mais fácil desistir, pedir demissão ou mudar de emprego — se tivermos escolha — ou nos descompromissar, relaxar ou buscar uma justiça grosseira criada por nós mesmos. Ou, mesmo permanecendo no trabalho, podemos cansar e desanimar, perdendo o interesse em realizá-lo como um serviço a Deus. Que Deus nos dê a graça de suportar situações difíceis no trabalho! As dificuldades que lá enfrentamos podem ser o meio de disciplina de Deus para nós, a fim de nos tornarmos pessoas mais fiéis e úteis. Se não podemos manter a integridade, servir os outros e buscar a reconciliação em meio a empregos difíceis ou ambientes de trabalho hostis, como podemos nos tornar como Jesus, “que suportou tal oposição dos pecadores contra si mesmo” (Hb 12.3)?
Agitando as coisas (Hb 12.18-29)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm dos equívocos generalizados em relação a Hebreus é que ele opõe o mundo celestial (incriado) ao terreno (criado), que antecipa uma aniquilação do cosmos, enquanto o céu permanece como o reino inabalável de Deus. Tal mal-entendido pode parecer encontrar apoio em textos como Hebreus 12.26-27.
A voz dele naquela ocasião abalou a terra, mas agora promete: “Uma vez mais, abalarei não apenas a terra, mas também o céu”. As palavras “uma vez mais” indicam a remoção das coisas mutáveis, isto é, das coisas criadas, de forma que permaneça o que é inabalável.
Mas, examinando mais de perto, vemos que o céu e a terra não são muito diferentes um do outro. Os céus serão abalados, assim como a terra (Hb 12.26). Hebreus descreve o mundo celestial como uma “criação” tanto quanto o cosmos (Hb 8.2; 11.10). Fala de ressurreição (Hb 6.2, 11.35), que é uma recuperação, não uma aniquilação, da criação. Ele compreende o cosmos (Hb 1.2-6, 11.3) como a herança do Filho. Proclama que a oferta de Cristo foi um evento corporal, neste mundo, de carne e sangue (Hb 12.24; 13.2; 13.20). Em última análise, “abalar” é a remoção de tudo o que é imperfeito ou pecaminoso do céu e da terra, não a destruição da terra em favor do céu.
A linguagem aqui é uma referência a Ageu 2, onde “tremer” se refere à derrubada de ocupantes estrangeiros, para que Israel e seu templo possam ser reconstruídos. Essa referência, e o argumento de Hebreus como um todo, indica que o resultado final desse abalo será a tomada do templo de Deus — na terra — pela glória. Todo o cosmos se torna o templo de Deus, purificado e recuperado. Em Ageu 2, o tremor do céu e da terra leva à realização da paz na terra que fomos exortados a buscar anteriormente, em Hebreus 12. “‘E neste lugar estabelecerei a paz’, declara o Senhor dos Exércitos” (Ag 2.9).
O que é transitório, então, não é o mundo criado, mas a imperfeição, o mal e o conflito que infectam o mundo. Derramar nossa vida no reino de Deus significa trabalhar por meio da criação e redenção que pertencem ao avanço do governo de Cristo (Hb 7.2). Não importa se somos cozinheiros, educadores, atletas, gerentes, donas de casa, ecologistas, senadores, bombeiros, pastores ou qualquer outra pessoa, participar do reino de Cristo significa não abandonar o trabalho “mundano” em favor do trabalho “espiritual”. É perseverar — agradecidos a Deus (Hb 12.28) — em todos os tipos de trabalho, sob a disciplina de Cristo.
Hospitalidade (Hb 13.1-3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm meio às várias exortações finais em Hebreus 13, duas têm uma relevância especial para o trabalho. Vamos começar com Hebreus 13.2, que diz: “Não se esqueçam da hospitalidade, pois foi praticando-a que, sem saber, alguns acolheram anjos”. O versículo faz alusão a Abraão e Sara recebendo visitantes (Gn 18.1-15) que acabam sendo anjos (Gn 19.1), os próprios portadores da promessa de um filho a Abraão e Sara (Gn 18.10), que figura de forma tão proeminente neste livro (Hb 6.13-15; 11.8-20). Esses versículos também nos lembram dos muitos atos de hospitalidade de Jesus (por exemplo, Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17; Jo 2.1-11; 6.1-14; 21.12-13) e daqueles que o seguiram (por exemplo, Mc 1.31; Lc 5.9), e parábolas como o banquete de casamento (Mt 22.1-4; Lc 14.15-24).
A hospitalidade pode ser uma das formas de trabalho mais subestimadas do mundo — pelo menos, no mundo ocidental moderno. Muitas pessoas trabalham duro para praticar a hospitalidade, embora, para a maioria, seja um trabalho não remunerado. No entanto, poucos, se inquiridos sobre qual é sua ocupação, diriam: “Ofereço hospitalidade”. É mais provável que vejamos isso como uma diversão ou um interesse privado, em vez de um serviço a Deus. No entanto, a hospitalidade é um grande ato de fé — que a provisão de Deus arcará com as despesas de dar comida, bebida, entretenimento e abrigo; que o risco de danos ou roubo de propriedade será suportável; que o tempo gasto com estranhos não diminuirá o tempo com familiares e amigos, e, acima de tudo, que vale a pena se preocupar com pessoas estranhas. Mesmo que tenhamos que sair de nosso caminho para oferecê-la — na prisão, por exemplo (Hb 13.3) — a hospitalidade é um dos atos mais significativos de trabalho ou serviço que os seres humanos podem fazer (Mt 25.31-40).
Além disso, quase todos têm a oportunidade de pôr em prática o espírito de hospitalidade no trabalho. Muitas pessoas trabalham em indústrias hoteleiras. Será que reconhecemos que estamos cumprindo Hebreus 13.1—3quando oferecemos um quarto de hotel limpo e bem cuidado, ou um jantar saudável e delicioso, ou organizamos uma festa ou recepção? Não importa o setor ou a ocupação, toda interação com um colega de trabalho, cliente, fornecedor ou estranho no local de trabalho é uma oportunidade de fazer os outros se sentirem bem-vindos e valorizados. Imagine o testemunho do amor de Deus se os cristãos tivessem uma reputação de hospitalidade no decorrer dos negócios.
Questões com o dinheiro (Hb 13.5-6)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA segunda exortação relacionada ao trabalho, no capítulo 13, diz respeito ao amor ao dinheiro: “Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: ‘Nunca o deixarei; jamais o abandonarei’” (Hb 13.4). Essa ordem de nos livrarmos do amor ao dinheiro sugere que as pressões financeiras figuravam entre os problemas especiais enfrentados pelos leitores originais deste livro. Isso já foi indicado em Hebreus 10.32-36 e indiretamente em Hebreus 11.25-26. Talvez a ênfase na futura “cidade” (Hb 11.10; 12.22; 13.14) tenha sido estimulada em parte por sua experiência de alienação econômica e social em sua cidade presente.
Embora tenhamos total confiança na proteção e na provisão de nosso Deus, isso de forma alguma garante que desfrutaremos de uma vida de prosperidade material. Jesus nunca nos prometeu uma vida fácil, e o trabalho árduo pode não ser recompensado nesta vida com riqueza ou luxo. O ponto de Hebreus 13.5-6 é que o Senhor fornecerá tudo o que precisamos para uma vida fundamentada na fé. É claro que muitos crentes fiéis passaram por severas dificuldades financeiras, e muitos até morreram pela vulnerabilidade, de sede, fome, doenças e coisas piores. Eles morreram assim por meio da fé, não por falta dela. O autor de Hebreus está perfeitamente ciente disso, tendo relatado cristãos que sofreram tortura, zombaria, açoitamento, prisão, apedrejamento, que foram serrados ao meio, que morreram pela espada, por miséria, perseguição, tormento e peregrinação por montanhas, desertos, cavernas e buracos no solo (Hb 11.35-38)! Em última análise, as promessas de Deus e nossas orações são cumpridas assim como o foram para seu Filho — por meio da ressurreição dentre os mortos (Hb 5.7-10). Este livro opera com uma visão econômica transformada, de que nossas necessidades são atendidas no avanço do reino de Deus, e não em nossa prosperidade pessoal. Portanto, se não temos nada, não nos desesperamos; se temos o suficiente, estamos contentes, e, se temos muito, o sacrificamos pelo bem dos outros.
A advertência contra o amor ao dinheiro não decorre da descoberta de que o reino de Deus na criação, o mundo material, é de alguma forma menos espiritual que o reino de Deus no céu. Em vez disso, decorre da consciência surpreendente de que, em um mundo decaído, o amor ao dinheiro cria um apego à ordem atual que nos impede de trabalhar para a transformação do mundo. Se o dinheiro é a principal razão para aceitarmos um emprego, abrirmos uma empresa, concorrermos a um cargo, filiar-nos a uma igreja, escolhermos os amigos, investirmos os recursos, gastarmos nosso tempo ou encontrarmos um cônjuge, então não estamos vivendo pela fé.
Trabalhando fora do acampamento (Hb 13.11-25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA terceira exortação relacionada ao trabalho, no capítulo 13, é “saiamos até ele [Jesus], fora do acampamento, suportando a desonra que ele suportou” (Hb 13.13). De acordo com Hebreus 13.11-13, “o sumo sacerdote leva sangue de animais até o Lugar Santíssimo como oferta pelo pecado, mas os corpos dos animais são queimados fora do acampamento”, fora do domínio dos santos, no lugar dos imundos. “Jesus também sofreu fora das portas da cidade”, fora do acampamento, no domínio dos profanos, “para santificar o povo por meio do seu próprio sangue”. Hebreus, portanto, tira a lição de que também devemos sair do acampamento e nos juntar a Jesus lá.
Muitos cristãos trabalham em lugares “fora do acampamento” da santidade, ou seja, em locais de trabalho em que hostilidade, desafios éticos e sofrimento são ocorrências regulares. Às vezes, sentimos que, para seguir bem a Cristo, precisamos encontrar locais de trabalho mais santos. Mas esta passagem de Hebreus nos mostra que o oposto é verdadeiro. Seguir a Cristo plenamente é segui-lo aos lugares onde sua ajuda salvadora é desesperadamente necessária, mas não necessariamente bem-vinda. Fazer a obra do reino de Jesus implica sofrer junto com Jesus. A frase “suportando a desonra que ele suportou” ecoa a fé de Moisés, que, “por causa de Cristo, considerou a desonra uma riqueza maior do que os tesouros do Egito” (Hb 11.24-26). Essa “desonra” foi a perda de honra e posses, mencionada anteriormente no livro. Às vezes, sacrificar nossos bens, privilégios e status pode ser a única maneira de ajudar os outros. No entanto, ajudar os outros é precisamente o motivo pelo qual Deus nos envia para trabalhar “fora do acampamento”, em primeiro lugar. “Não se esqueçam de fazer o bem e de compartilhar com os outros o que vocês têm, pois Deus se agrada de tais sacrifícios” (Hb 13.16).
Resumo e conclusão de Hebreus
Voltar ao índice Voltar ao índiceHebreus nos convoca ao mundo da promessa de Deus a Abraão — uma promessa de trazer toda a humanidade para o espaço sagrado de seu reino. Anuncia o cumprimento da vontade de Deus de incorporar todo o cosmos na esfera de sua própria santidade. Como povo em peregrinação ao reino de Deus, somos chamados a investir nossa vida, incluindo a profissional, no cosmos cujo arquiteto e construtor é Deus. O livro de Hebreus nos exorta a nos contentar com o que Deus fornece e a trabalhar pela paz (shalom) e santidade para todos. Devemos sofrer de bom grado a perda de honra e posses pela alegria que está à nossa frente. Nesta jornada, somos supridos, incentivados e encorajados pelo Filho de Deus, o verdadeiro sacerdote cujo autossacrifício abre um caminho para que o mundo seja purificado e restaurado ao que Deus planejou desde o início. Mesmo em meio ao nosso sofrimento, a ação de graças é nossa atitude básica e nossa fonte de perseverança. Cristo nos chama a tornar conhecidos os valores de seu reino dentro da estrutura econômica, social e política de um mundo caído.
Isso requer escapar da armadilha de viver por dinheiro. O que fazemos e o que nos abstemos de fazer baseiam-se nesses valores. Temos uma obra, qualquer que seja nossa ocupação, e a mesma ambição do autor de Hebreus: “Que ele aperfeiçoe vocês em todo o bem para fazerem a vontade dele e opere em nós o que lhe é agradável, por meio de Jesus Cristo, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém” (Hb 13.21).