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Rute e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Ruth bible commentary

Introdução ao livro de Rute

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O livro de Rute conta a extraordinária história da fidelidade de Deus a Israel na vida e na obra de três pessoas comuns: Noemi, Rute e Boaz. À medida que eles trabalham tanto em momentos de dificuldades econômicas como em momentos de prosperidade, vemos a mão de Deus em ação mais claramente em seu trabalho agrícola produtivo, no gerenciamento generoso de recursos para o bem de todos, no tratamento respeitoso dos colegas de trabalho, na engenhosidade diante da necessidade e na concepção e criação dos filhos. Ao longo de tudo, a fidelidade de Deus a eles cria oportunidades para um trabalho frutífero, e fidelidade das pessoas a Deus traz a bênção da provisão e segurança uns para os outros e para as pessoas ao seu redor.

Os acontecimentos no livro de Rute ocorrem na época da festa da colheita da cevada (Rt 1.22; 2.17,23; 3.2,15,17), quando se celebrava a conexão entre a bênção de Deus e o trabalho humano. Duas passagens da Torá dão o pano de fundo do festival (grifo nosso):

Celebrem a festa da colheita dos primeiros frutos do seu trabalho de semeadura. (Êx 23.16)
Celebrem então a festa das semanas ao Senhor, o seu Deus, e tragam uma oferta voluntária conforme às bênçãos recebidas do Senhor, o seu Deus. E alegrem-se perante o Senhor, o seu Deus, no local que ele escolher para habitação do seu Nome, junto com os seus filhos e as suas filhas, os seus servos e as suas servas, os levitas que vivem na sua cidade, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas que vivem com vocês. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito e obedeçam fielmente a estes decretos. (Dt 16.10-12)

Juntas, essas passagens estabelecem uma base teológica para os acontecimentos do livro de Rute.

  1. A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (“bênçãos recebidas do Senhor”).

  2. Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (“frutos do seu trabalho”).

  3. Deus chama as pessoas para que forneçam oportunidades de trabalho produtivo (“Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito”, uma lembrança de que Deus libertou seu povo da escravidão no Egito e garantiu-lhes sua provisão no deserto e na terra de Canaã) para pobres e pessoas vulneráveis ​​(“os estrangeiros, os órfãos e as viúvas”).

Em suma, a produtividade do trabalho humano é uma extensão da obra de Deus no mundo, e a bênção de Deus sobre o trabalho humano está inseparavelmente ligada ao mandamento de Deus de prover generosamente àqueles que não têm meios para se sustentar. Esses princípios fundamentam o livro de Rute. Mas o livro é uma narrativa, não um tratado teológico, e a história é envolvente.

Tragédia atinge a família de Rute e Noemi (Rute 1.1-22)

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A história começa com uma fome “na época dos juízes” (Rt 1.1). Esta foi uma época em que o povo de Israel havia abandonado os caminhos de Deus e caído na idolatria, em condições sociais horríveis e em uma guerra civil desastrosa, como é relatado nos capítulos de Juízes, imediatamente anteriores ao livro de Rute, nas Bíblias cristãs (nas Bíblias hebraicas, os livros aparecem em ordem diferente). Como um todo, a nação certamente não estava seguindo os preceitos da Torá no que diz respeito ao trabalho ou a qualquer outra coisa. Os personagens da história — pelo menos Noemi — reconheceram a perda da bênção de Deus que isso causou (Rt 1.13; 1.20-21). Como resultado, a estrutura socioeconômica da sociedade estava desmoronando e a fome assolava a terra.

Movidos pela fome, Elimeleque, sua esposa Noemi e seus dois filhos mudaram-se para Moabe — uma atitude de desespero, dada a longa inimizade entre Israel e Moabe —, onde pensaram que as perspectivas de trabalho produtivo eram maiores. Não sabemos se eles conseguiram encontrar trabalho, mas os dois filhos encontraram esposas em Moabe. Mas, em dez anos, elas experimentaram uma tragédia social e econômica: a morte de todos os homens, deixando Noemi e suas duas noras sem maridos (Rt 1.3-5). As três viúvas então tiveram de se sustentar sem os direitos legais e econômicos concedidos aos homens em sua sociedade. Em suma, elas não tinham maridos, nenhum título claro de propriedade da terra e nenhum recurso para ganhar a vida. “Não me chamem Noemi, melhor que me chamem de Mara [amarga], pois o Todo-poderoso tornou minha vida muito amarga”. Noemi lamentou (Rt 1.20), refletindo a dureza de sua situação.

Junto com os estrangeiros e os órfãos, as viúvas recebiam muita atenção na Lei de Israel. [1] Por terem perdido a proteção e o apoio de seus maridos, elas se tornavam alvos fáceis de abuso e exploração econômica e social. Muitas recorriam à prostituição simplesmente para sobreviver, uma situação muito comum para mulheres vulneráveis ​​em nossos dias. Noemi não apenas ficou viúva, mas também era uma estrangeira em Moabe. No entanto, se ela voltasse a Belém com suas noras, as mulheres mais jovens seriam viúvas e estrangeiras em Israel. [2] Talvez, em resposta à vulnerabilidade que enfrentavam, não importa onde morassem, Noemi exortou-as a voltar para seus lares maternos e orou para que o Deus de Israel concedesse a cada uma delas segurança dentro da casa de um novo marido (moabita) (Rt 1.8-9). No entanto, uma das noras, Rute, não suportava a ideia de separar-se de Noemi, por mais que sofressem. Suas palavras para Noemi cantam a profundidade de seu amor e lealdade:

Não insistas comigo que te deixe e que não mais te acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus! Onde morreres morrerei, e ali serei sepultada. Que o Senhor me castigue com todo o rigor, se outra coisa que não a morte me separar de ti! (Rt 1.16-17)

A vida pode ser difícil, e essas mulheres enfrentaram o pior.

A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (Rute 2.1-4)

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Noemi e Rute enfrentam dificuldades agonizantes, mas, em Deus, dificuldade não é desesperança. Embora não encontremos intervenções milagrosas óbvias no livro de Rute, a mão de Deus não está de forma alguma ausente. Pelo contrário, Deus está trabalhando a cada momento, especialmente por meio das ações de pessoas fiéis no livro. Há muito tempo, Deus havia prometido a Abraão: “Eu o tornarei extremamente prolífero; de você farei nações e de você procederão reis” (Gn 17.6). O Senhor cumpriu sua promessa, restaurando a produtividade agrícola de Israel (Rt 1.6), apesar da infidelidade de seu povo. Quando Noemi ouviu falar disso, decidiu voltar para casa, em Belém, para tentar encontrar comida. Rute, fiel à sua palavra, foi com ela, com a intenção de encontrar trabalho para sustentar a si mesma e a Noemi. À medida que a história se desenrola, as bênçãos de Deus se derramam sobre as duas — e, finalmente, sobre toda a humanidade — por meio do trabalho de Rute e seus resultados.

A fidelidade de Deus a nós é a base de toda a produtividade

No geral, as Escrituras Hebraicas retratam Deus como o Trabalhador divino, que fornece um paradigma para o trabalho humano. A Bíblia começa com uma imagem de Deus em ação — falando, criando, formando, construindo. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas aparece como o sujeito de muitos verbos “trabalhar”, mas as pessoas muitas vezes se referem a ele metaforicamente como “Trabalhador”. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas se envolve em muitos tipos de trabalho, [1] mas também ordena ao povo de Israel que trabalhe de acordo com o padrão divino (Êx 20.9-11). Ou seja, Deus trabalha diretamente e por meio das pessoas.

Os personagens principais do livro de Rute reconheceram Deus como o fundamento de seu trabalho, pela maneira como abençoavam uns aos outros e por suas repetidas declarações de fé. [2] Algumas dessas expressões são elogios por ações que Deus já tomou (ele não reteve sua bondade, mas forneceu um parente resgatador, Rt 4.14). Outros são pedidos de bênção divina (Rt 2.4,19; 3.10), presença (Rt 2.4) ou bondade (Rt 1.8). Um terceiro grupo envolve pedidos mais específicos de ação divina. Que Deus conceda segurança (Rt 1.9). Que Deus faça Rute igual a Raquel e Lia (Rt 4.11-12). A bênção em Rute 2.12 é particularmente significativa: “O Senhor lhe retribua o que você tem feito! Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” Todas essas bênçãos expressavam a certeza de que Deus está trabalhando para prover o sustento de seu povo.

Rute desejava receber a bênção da produtividade de Deus, fosse do próprio Deus (Rt 2.12) ou por meio de um ser humano, “aquele que me permitir” (Rt 2.2). Apesar de ser moabita, ela era mais sábia do que muitos em Israel quando se tratava de reconhecer a mão do Senhor em seu trabalho.

Para a ação da história, uma das bênçãos mais importantes de Deus é que ele abençoou Boaz com uma fazenda produtiva (Rt 2.3). Boaz estava plenamente ciente do papel de Deus em seu trabalho, como mostrado em sua repetida invocação da bênção do Senhor (Rt 2.4; 3.10).

Deus usa acontecimentos aparentemente fortuitos para capacitar o trabalho das pessoas

Uma das maneiras pelas quais Deus cumpre sua promessa de produtividade é seu domínio das circunstâncias do mundo. O estranho emprego de “casualmente” (traduzida como “aconteceu de” pela NVT) em Rute 2.3 é deliberado. Coloquialmente, diríamos que “ela estava com sorte”. Mas a afirmação é irônica. O narrador usa intencionalmente uma expressão que força o leitor a se sentar e perguntar como Rute “casualmente” chegou ao campo de um homem que não era apenas bondoso e permitiu que ela ficasse ali (Rt 2.2), mas também era um parente (Rt 2.1). À medida que a história se desenrola, vemos que a chegada de Rute ao campo de Boaz foi uma evidência da mão providencial de Deus. O mesmo pode ser dito sobre o aparecimento do parente mais próximo (resgatador), assim que Boaz se sentou no portão, em Rute 4.1–2.

Como o mundo seria triste se tivéssemos de ir trabalhar todos os dias esperando nada além do que nós mesmos temos o poder de realizar. Devemos depender do trabalho dos outros, da oportunidade inesperada, da explosão de criatividade, da bênção não prevista. Certamente, uma das bênçãos mais consoladoras de seguir a Cristo é sua promessa de que, quando formos trabalhar, ele trabalhará ao nosso lado e carregará a carga conosco. “Tomem sobre vocês o meu jugo... Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.29-30). Rute não tinha as palavras de Jesus, mas vivia na fé e confiança de que, sob as asas de Deus, encontraria tudo o que precisava (Rt 2.12).

A produtividade humana é uma consequência de nossa fidelidade a Deus

A fidelidade de Deus a Israel se refletiu na fidelidade de Rute a Noemi. Rute havia prometido: “Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rt 1.16). A promessa de Rute não era um apelo para permanecer como consumidora passiva no que restava da casa de Elimeleque, mas um compromisso de fornecer à sogra o máximo que pudesse. Embora não seja uma israelita, ela parece ter vivido de acordo com a Lei de Israel, conforme encarnada no Quinto Mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”. A restauração do trabalho produtivo para ela e sua família começou com seu compromisso de trabalhar em fidelidade à lei de Deus.

Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (Rute 2.5-7)

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A fidelidade de Deus é a base da produtividade humana, mas as pessoas precisam fazer o trabalho de verdade. Essa foi a intenção de Deus desde o princípio (Gn 1.28; 2.5; 2.15). Rute estava ansiosa para trabalhar arduamente e, assim, sustentar a si mesma e a Naomi. “Deixe-me ir para o campo”, implorou ela, e, quando teve a chance de trabalhar, seus colegas de trabalho relataram que “ela chegou cedo e está em pé até agora” (Rt 2.7). Seu trabalho era excepcionalmente produtivo. Quando ela voltou para casa, após seu primeiro dia de trabalho, tendo colhido a cevada dos talos, sua colheita rendeu “quase uma arroba” (Rt 2.17). Isso equivalia a aproximadamente um cesto de 20 litros de cevada. [1] Tanto Deus quanto Boaz a elogiaram (e a recompensaram) por sua fé e diligência (Rt 2.12,17-23; 3.15-18).

Em maior ou menor grau, todos somos vulneráveis ​​a circunstâncias que tornam difícil ou impossível ganhar a vida. Desastres naturais, corte de jornada, corte de pessoal, preconceito, lesão, doença, falência, tratamento injusto, restrições legais, barreiras linguísticas, falta de treinamento ou experiência relevante, idade, sexo, má gestão econômica por parte do governo ou da indústria, barreiras geográficas, ser demitido, necessidade de cuidar dos membros da família, e uma série de outros fatores pode nos impedir de trabalhar para sustentar a nós mesmos e às pessoas que dependem de nós. No entanto, Deus espera que trabalhemos o máximo que pudermos (Êx 20.9).

Mesmo que não consigamos encontrar um emprego que atenda às nossas necessidades, precisamos trabalhar o máximo que pudermos. Rute não tinha um emprego estável, com horário regular e salário. Ela estava ansiosa para saber se sua posição na vida seria suficiente para encontrar oportunidades no ambiente de trabalho (Rt 2.12), e não podia necessariamente esperar ganhar o suficiente para alimentar sua família. Ela foi trabalhar mesmo assim. Muitas das condições que enfrentamos hoje em termos de desemprego e subemprego são profundamente desencorajadoras. Se a falta de empregos altamente qualificados nos deixa apenas o que parecem ser oportunidades inferiores, se a discriminação nos impede de conseguir o emprego para o qual somos qualificados, se as circunstâncias nos impedem de obter a educação de que precisamos para um bom emprego, se as condições fazem com que o trabalho pareça sem esperança, o exemplo de Rute é que, apesar disso, somos chamados a trabalhar. Nosso trabalho pode nem mesmo gerar renda a princípio, como quando voluntariamos para ajudar os outros, cuidar de membros da família, receber educação ou treinamento ou cuidar da própria casa.

A graça salvadora é que Deus é o poder por trás de nosso trabalho. Não dependemos de nossa própria capacidade ou das circunstâncias ao nosso redor para suprir nossas necessidades. Em vez disso, trabalhamos fielmente como podemos, sabendo que a fidelidade de Deus à sua promessa de gerar frutos é o que nos dá confiança de que nosso trabalho vale a pena, mesmo nas situações mais adversas. Raramente somos capazes de ver de antemão como Deus pode usar nosso trabalho para cumprir suas promessas, mas o poder de Deus se estende muito além do que podemos ver.

Receber a bênção de Deus para a produtividade significa respeitar os colegas de trabalho (Rute 2.8-16)

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Como Rute 2.1 relata, Boaz era “um homem rico e influente”. Quaisquer que sejam as conotações que isso possa ter hoje, no caso de Boaz, isso significava que ele era um dos melhores chefes da Bíblia. Seu estilo de liderança começou com respeito. Quando ele saía para o campo onde seus homens estavam trabalhando, ele os cumprimentava com uma bênção (“O Senhor esteja com vocês”), e eles respondiam da mesma forma (“O Senhor te abençoe”; Rt 2.4). O local de trabalho de Boaz é notável em muitos níveis. Ele era dono e administrava uma empresa que dependia de uma força de trabalho contratada. Ele controlava o ambiente de trabalho dos outros. Em contraste com muitos ambientes de trabalho em que supervisores e proprietários tratam seus funcionários com desdém e os funcionários não têm respeito por seus chefes, Boaz promovia um relacionamento de confiança e respeito mútuo.

Boaz colocou em prática seu respeito por seus trabalhadores, fornecendo-lhes água enquanto trabalhavam (Rt 2.9), comendo com eles e, acima de tudo, compartilhando sua comida com a pessoa considerada a mais baixa entre eles (Rt 2.14). Mais tarde, aprendemos que, na época da colheita, Boaz, o proprietário da terra, limpava a cevada com seus ceifeiros e dormia com eles no campo (Rt 3.2-4,14).

Boaz demonstrou uma visão elevada de todo ser humano como portador da imagem de Deus (Gn 1.27; Pv 14.31; 17.5) pela maneira sensível com que tratou a mulher estrangeira em seu ambiente de trabalho. Quando a viu entre os trabalhadores, perguntou gentilmente: “A quem pertence aquela moça?” (Rt 2.5), supondo que ela fosse dependente ou ligada a algum homem — seja como esposa ou filha —, talvez algum proprietário de terras na área. Quando ele soube que ela era uma mulher moabita que havia retornado de Moabe com Noemi (Rt 2.6), e ouviu falar de seu pedido de permissão para respigar atrás de seus ceifeiros (Rt 2.7), chocantemente, as primeiras palavras que ele disse foram: “Ouça com atenção, minha filha” (Rt 2.8). Compartilhar sua comida com uma mulher estrangeira (Rt 2.14) foi um ato mais significativo do que poderia parecer. Homens respeitáveis, ​​proprietários de terras, não estavam acostumados a conversar com mulheres estrangeiras, [1] como a própria Rute aponta (Rt 2.10). Um homem mais preocupado com aparências sociais e oportunidades de negócios — e menos compadecido por alguém em necessidade — poderia ter enviado uma intrusa moabita para fora de suas terras de imediato. Mas Boaz estava mais do que disposto a defender o trabalhador vulnerável em seu meio, qualquer que fosse a reação dos outros.

Na verdade, com esse relato, podemos ter encontrado a primeira política contra o assédio sexual no ambiente de trabalho registrada no mundo. Talvez ele estivesse ciente de que muitos proprietários e trabalhadores de fazendas eram homens abusivos [2] e talvez seja por isso que ele comunicou a Rute que havia falado a seus homens para que não a tocassem (Rt 2.9). O comentário de Noemi: “É melhor mesmo você ir com as servas dele, minha filha. Noutra lavoura poderiam molestá-la” (Rt 2.22), certamente mostra que ela temia pela segurança de sua nora. Os termos da política de Boaz são claros:

  1. Os trabalhadores do sexo masculino não deveriam “incomodar” essa mulher. Normalmente, a palavra naga, significa “tocar”, mas aqui funciona de forma mais geral para “golpear, assediar, tirar vantagem de, maltratar ”. [3] Boaz reconhece que a implicação de ser tocado é determinada por como a pessoa que está sendo tocada percebe o ato.
  2. Rute deveria ter acesso igual à água (Rt 2.9) e à mesa do almoço (Rt 2.14). Na hora da refeição, Boaz convidou Rute a sentar-se com ele e seus trabalhadores e mergulhar seu pedaço de pão no molho (Rt 2.14). Então ele mesmo a serviu até que ela estivesse mais do que satisfeita. A escolha do verbo nagash, “achegar-se, aproximar-se”, sugere que, como estrangeira, Rute havia deliberada e apropriadamente (de acordo com o costume) mantido distância. A política de assédio sexual de Boaz não é simplesmente restritiva — proibindo certas ações —, mas é positiva em sua intenção, o que significa que a reação da pessoa em perigo de assédio é o indicador do que os outros podem fazer. Boaz procurou descobrir se Rute se sentia segura como medida para saber se ele estava oferecendo a proteção de que ela precisava. Ele demonstrou, por exemplo, como esperava que as trabalhadoras vulneráveis ​​fossem respeitadas.
  3. Os funcionários regulares de Boaz não deveriam repreendê-la (Rt 2.15) ou impedi-la (Rt 2.16). Junto com a palavra “tocar” em 2.9, essas expressões demonstram que o assédio vem de muitas formas: abuso físico, emocional e verbal. De fato, com seu pronunciamento efusivo de bênção sobre Rute (Rt 2.12), Boaz representa um modelo dramaticamente afirmativo.
  4. Os funcionários regulares deveriam tornar o ambiente de trabalho de Rute o mais seguro possível e fazer de tudo para ajudá-la a realizar suas tarefas de trabalho (Rt 2.15-16). No local de trabalho, prevenir o assédio significa não apenas criar um ambiente seguro, mas também produtivo para as pessoas em risco. As barreiras à produtividade, ao avanço e às recompensas que as acompanham devem ser eliminadas. Boaz poderia ter deixado Rute segura, mantendo-a a uma grande distância dos trabalhadores do sexo masculino. Mas isso teria negado seu acesso a água e comida, e poderia ter causado perda de grãos devido ao vento ou a animais antes que ela pudesse juntar os feixes. Boaz se certificou de que as salvaguardas que ele criou permitissem que ela fosse totalmente produtiva.

Parece que os trabalhadores de Boaz captaram seu espírito generoso. Quando seu chefe os saudava com uma bênção, eles também o abençoavam (Rt 2.4). Quando Boaz perguntou sobre a identidade da mulher que havia aparecido em seu campo, o supervisor da força de trabalho reconheceu que Rute era moabita, mas exibiu um tom gracioso (Rt 2.6-7). O fato de Rute ter trazido uma grande quantidade de grãos para casa, para Noemi, atesta a reação positiva dos trabalhadores às recomendações de Boaz de tratar bem Rute. Eles não apenas obviamente cortaram muitos grãos para ela, mas também aceitaram essa mulher moabita como colaboradora durante a colheita (Rt 2.21-23).

Os efeitos positivos da liderança de Boaz vão além do ambiente de trabalho. Quando Noemi vê os resultados dos esforços de Rute, ela abençoa o empregador que deu seu trabalho e louva a Deus por sua bondade e generosidade (Rt 2.20). Mais tarde, torna-se óbvio que a alta reputação de Boaz na comunidade está trazendo harmonia social e glória a Deus (Rt 4.11-12). Todos os líderes — na verdade, todos os trabalhadores — moldam a cultura na qual trabalham. Embora possamos pensar que somos coagidos por nossa cultura a nos conformarmos a maneiras de trabalhar que são injustas, sem sentido ou improdutivas, na realidade, a maneira como trabalhamos influencia profundamente os outros. Boaz, um homem de posses em meio a uma sociedade corrupta e sem fé (Rt 1.1, onde “na época dos juízes” é uma abreviação para uma sociedade corrupta) consegue criar um negócio honesto e bem-sucedido. O supervisor da colheita molda práticas igualitárias em uma sociedade repleta de misoginia e racismo (Jz 19—21). Rute e Noemi formam uma família amorosa mesmo diante de grandes perdas e dificuldades. Quando nos sentimos pressionados a nos conformarmos com um ambiente ruim no trabalho, a promessa da fidelidade de Deus pode superar todas as dúvidas que levamos em conta devido à disfunção cultural e social ao nosso redor.

Deus chama pessoas para que forneçam oportunidades para os pobres trabalharem produtivamente (Rute 2.17-23)

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A maneira mais importante pela qual Deus supera as barreiras à nossa produtividade é por meio das ações de outras pessoas. No livro de Rute, vemos isso tanto na lei de Deus na sociedade quanto em sua orientação aos indivíduos.

A lei de Deus chama pessoas de recursos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres (Rute 2.17-23)

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A ação do livro de Rute gira em torno da respiga, que era um dos elementos mais importantes da Lei para a proteção de pessoas pobres e vulneráveis. Os requisitos são estabelecidos em Levítico, Deuteronômio e Êxodo (clique nos links abaixo para ver mais sobre cada uma das passagens relevantes).

Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até as extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. (Lv 19.9-10, repetido em parte em Lv 23.22) Veja “Levítico 19.9-10” em Levítico e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.
Quando vocês estiverem fazendo a colheita de sua lavoura e deixarem um feixe de trigo para trás, não voltem para apanhá-lo. Deixem-no para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, para que o Senhor, o seu Deus, os abençoe em todo o trabalho das suas mãos. Quando sacudirem as azeitonas das suas oliveiras, não voltem para colher o que ficar nos ramos. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. E quando colherem as uvas da sua vinha, não passem de novo por ela. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito; por isso lhes ordeno que façam tudo isso. (Dt 24.19-22)
Plantem e colham em sua terra durante seis anos, mas no sétimo deixem-na descansar sem cultivá-la. Assim os pobres do povo poderão comer o que crescer por si, e o que restar ficará para os animais do campo. Façam o mesmo com as suas vinhas e com os seus olivais. (Êx 23.10-11) Veja “Êxodo 22.21-27 e 23.10-11” em Êxodo e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A base da lei é a intenção de que todas as pessoas tenham acesso aos meios de produção necessários para sustentar a si mesmas e suas famílias. Em geral, cada família (exceto no caso da tribo sacerdotal dos levitas, que eram sustentados por dízimos e ofertas) deveria ter uma porção perpétua de terra que nunca poderia ser alienada (Nm 27.5-11; 36.5-12; Dt 19.14, 27.17; Lv 25). Assim, todos em Israel teriam meios para cultivar alimentos. Mas estrangeiros, viúvas e órfãos normalmente não receberiam uma herança de terra, por isso eram vulneráveis ​​à pobreza e ao abuso. A lei da respiga deu-lhes a oportunidade de se sustentarem, colhendo as sobras do campo, os grãos e os produtos que estavam verdes ou perdidos durante a colheita inicial, e o que quer que surgisse nos campos que estavam em descanso em um determinado ano. O acesso à respiga deveria ser fornecido gratuitamente por todos os proprietários de terras.

Essas passagens sugerem três fundamentos para as leis de respiga. A generosidade para com os pobres (1) era um pré-requisito para que Deus abençoasse o trabalho das mãos das pessoas (Dt 24.19); (2) deveria ser impulsionada pela memória da experiência vivida por Israel no Egito, sob senhores de escravos cruéis e abusivos (Dt 24.22a); e (3) é uma questão de obediência à vontade de Deus (Dt 24.22b). Vemos todas essas três motivações nas ações de Boaz: (1) ele abençoou Rute, (2) lembrou-se da graça de Deus para com Israel (3) e a elogiou por se colocar nas mãos de Deus (Rt 2.12). É uma questão em aberto até que ponto as leis sobre a terra e a colheita foram cumpridas no antigo Israel, mas Boaz as manteve de maneira exemplar.

As leis de respiga forneciam uma notável rede de apoio às pessoas pobres e marginalizadas, pelo menos na medida em que eram realmente praticadas. Já vimos que a intenção de Deus é que as pessoas recebam sua produtividade trabalhando. A respiga fazia exatamente isso. Ela proporcionava uma oportunidade de trabalho produtivo para aqueles que, de outra forma, teriam de depender da mendicância, da escravidão, da prostituição ou de outras práticas degradantes. Os respigadores mantinham as habilidades, o respeito próprio, o condicionamento físico e os hábitos de trabalho que os tornariam produtivos na agricultura comum, caso surgisse a oportunidade de casamento, adoção ou retorno ao seu país de origem. Os proprietários de terras forneciam oportunidades, mas aquilo não era uma oportunidade de exploração. Não havia trabalho forçado. O benefício estava disponível localmente em todo o país, sem a necessidade de uma burocracia pesada e propensa à corrupção. No entanto, dependia da formação do caráter de cada proprietário de terra para cumprir a lei da respiga, e não devemos romantizar as circunstâncias que os pobres enfrentavam no antigo Israel.

No caso de Boaz, Rute e Noemi, as leis de respiga funcionaram conforme o planejado. Se não fosse pela possibilidade de respiga, Boaz teria enfrentado duas alternativas, uma vez que tomou conhecimento da pobreza de Rute e Noemi. Ele poderia deixá-las morrer de fome ou poderia entregar comida pronta (pão) na casa delas. A primeira é impensável, mas a segunda, embora pudesse ter aliviado sua fome, teria tornado aquelas mulheres cada vez mais dependentes de Boaz. Por causa da oportunidade de respiga, no entanto, Rute não apenas poderia trabalhar na colheita, mas também poderia usar o grão para fazer pão por meio de seu próprio trabalho. O processo preservou sua dignidade, fez uso de suas habilidades e conhecimentos, libertou tanto ela como Naomi da dependência de longo prazo e as tornou menos vulneráveis ​​à exploração.

Nos debates sociais, políticos e teológicos de hoje sobre a pobreza e as respostas públicas e privadas a ela, vale a pena ter em mente e debater vigorosamente esses aspectos da respiga. Os cristãos discordam uns dos outros sobre questões como responsabilidades individuais vs. sociais, meios privados vs. públicos e distribuição de renda. É improvável que uma reflexão cuidadosa sobre o livro de Rute resolva essas divergências, mas talvez possa destacar objetivos compartilhados e um terreno comum. A sociedade moderna pode não ser adequada para a respiga no sentido literal e agrícola, mas será que há aspectos que poderiam ser incorporados às maneiras pelas quais as sociedades cuidam das pessoas pobres e vulneráveis ​​hoje? Em particular, como podemos oferecer oportunidades para que as pessoas tenham acesso aos meios de trabalho produtivo, em vez de serem sufocadas pela dependência ou pela exploração?

Deus guia indivíduos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres e vulneráveis (Rute 2.17-23)

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Boaz foi inspirado a ir muito além do que a lei exigia para atender aos pobres e vulneráveis. As leis da respiga apenas exigiam que os proprietários deixassem alguns produtos nos campos para que estrangeiros, órfãos e viúvas respigassem. Isso geralmente significava que os pobres e vulneráveis ​​tinham um trabalho difícil, perigoso e desconfortável, como colher grãos nas beiras dos campos cobertas de ervas daninhas ou no alto das oliveiras. Os produtos que obtinham dessa maneira eram geralmente de qualidade inferior, como uvas e azeitonas que haviam caído no chão ou não estavam totalmente maduras. Mas Boaz diz a seus trabalhadores que sejam ativamente generosos. Eles deveriam remover grãos de primeira qualidade dos talos que haviam cortado e deixá-los em cima do restolho, para que Rute precisasse apenas recolhê-los. A preocupação de Boaz não era cumprir minimamente um regulamento, mas genuinamente prover para Rute e sua família.

Além disso, ele insistiu que ela respigasse em seus campos (mantendo o que colheu para si e para Noemi, é claro) e se juntasse aos trabalhadores dele. Ele não apenas deu a ela acesso aos seus campos, mas também a tornou uma de suas assalariadas, a ponto de garantir que ela recebesse uma parte proporcional da colheita (Rt 2.16).

Em um mundo em que todas as nações, todas as sociedades contam com pessoas desempregadas e subempregadas que precisam de oportunidades de trabalho, como os cristãos podem imitar Boaz? Como podemos incentivar as pessoas a aplicarem suas habilidades e talentos dados por Deus para criar bens e serviços que empreguem pessoas de forma produtiva? Como podemos moldar a formação do caráter das pessoas que possuem e administram os recursos da sociedade, de modo que, com entusiasmo e criatividade, ofereçam oportunidades aos pobres e marginalizados?

Como, de fato, essas perguntas se aplicam a nós? Cada um de nós é uma pessoa abastada, mesmo que não sejamos ricos como Boaz? As pessoas de classe média têm os meios e a responsabilidade de oferecer oportunidades às pessoas pobres? E quanto às próprias pessoas pobres? O que Deus pode estar levando cada um de nós a fazer para trazer sua bênção de produtividade a outros trabalhadores e futuros trabalhadores?

A bênção de Deus é redobrada quando as pessoas trabalham de acordo com seus caminhos (Rute 3.1–4.18)

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No notável episódio em que Rute respiga no campo de Boaz, vemos uma demonstração vívida da compaixão, generosidade e tolerância étnica de Boaz. Isso levanta algumas questões: Por que o coração de Boaz era tão brando em relação a Rute e por que ele criaria esse ambiente em que qualquer pessoa, mesmo uma moabita estrangeira, se sentiria em casa? De acordo com o próprio testemunho de Boaz, Rute incorporou nobreza e fidelidade ao verdadeiro Deus (Rt 3.10-11). Como resultado, ele desejou a ela: “Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” (Rt 2.12). Ela era nascida em Moabe, mas se voltou para o Deus de Israel em busca de salvação (Rt 1.16). Boaz reconheceu as asas de Deus sobre ela e estava ansioso para ser o instrumento da bênção de Deus para ela. Ao cuidar de um estrangeira necessitada, ele honrou o Deus de Israel. Nas palavras do provérbio israelita: “Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado é honrar a Deus” (Pv 14.31; veja também Pv 17.5). O apóstolo Paulo expressou esse tema séculos depois: “Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10).

À medida que a história avançava, Boaz começou a ver em Rute mais do que uma trabalhadora diligente e a nora fiel de Noemi. Com o tempo, ele estendeu sua capa sobre Rute (Rt 3.9) — uma metáfora apropriada para o casamento, espelhando o amor e o compromisso representados pelas asas de Deus. Há um aspecto relacionado ao trabalho nessa história de amor, pois há bens imobiliários envolvidos. Noemi ainda tem algum direito à terra que pertencia a seu falecido marido e, de acordo com a lei israelita, seu parente mais próximo tinha o direito de adquirir a terra e mantê-la na família, casando-se com Noemi. Boaz, a quem Noemi mencionou ser parente de seu marido (Rt 2.1), era, na verdade, o segundo na linha de sucessão a esse direito. Ele informa o homem que era o parente mais próximo de seu direito, mas quando o homem descobre que reivindicar a terra significava também ter de levar a moabita Rute para sua casa, ele abre mão do direito (Rt 4.1-6).

Boaz, em contraste, ficou satisfeito por ser escolhido por Deus para mostrar favor a essa mulher, apesar de ela ser considerada racial, econômica e socialmente inferior (Rt 4.1-12). Ele exerce seu direito de resgatar a propriedade, não casando-se com a idosa Noemi, em um casamento de conveniência, mas, com a permissão de Noemi, casando-se com Rute, em um casamento de amor e respeito. Ao se casar com essa mulher moabita, ele cumpre, à sua maneira, um pouco da promessa de Deus a Abraão: “Por meio dela [da sua descendência], todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 22.18). Ele também ganha ainda mais propriedades, que podemos presumir que serão administradas de forma tão produtiva e generosa quanto a propriedade que já possuía, prenunciando as palavras de Cristo de que “a quem tiver, mais lhe será dado” (Mc 4.25). Como logo aprenderemos, é perfeitamente adequado que Boaz sirva como precursor de Jesus. Ao longo do caminho, os acontecimentos da história revelam ainda mais sobre como Deus está trabalhando no mundo para o bem.

Deus opera por meio da engenhosidade humana (Rute 3.1-18)

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Ao instigar o namoro entre Boaz e Rute, a necessidade mais uma vez leva Noemi a ir além dos limites da convenção. Ela envia Rute à eira de Boaz, no meio da noite, para que “descubra os pés dele e deite-se” (Rt 3.4). Independentemente do significado de “pés” em Rute 3.4,7,8,14 — que pode ser um eufemismo sexual [1] — o esquema que Noemi inventa é suspeito do ponto de vista dos costumes e da moralidade, e está repleto de perigos. Os preparativos de Rute e a escolha do local do encontro sugerem as ações de uma prostituta. Em circunstâncias normais, se um homem de respeito e moralmente nobre como Boaz, dormindo na eira, acordasse no meio da noite e descobrisse uma mulher ao seu lado, ele certamente a mandaria embora, protestando que não tinha nada a ver com mulheres como ela. O pedido de Rute para que Boaz se casasse com ela é igualmente ousado do ponto de vista do costume: uma estrangeira fazendo uma proposta a um israelita; uma mulher fazendo propostas a um homem; uma jovem fazendo propostas para uma pessoa mais velha; uma trabalhadora do campo indigente fazendo propostas a um rico proprietário de terras. Mas, em vez de se ofender com a atitude de Rute, Boaz a abençoou, elogiou-a por seu compromisso com o bem-estar de sua família, chamou-a de “minha filha”, tranquilizou-a dizendo-lhe que não temesse, prometeu fazer tudo o que ela pedisse e a declarou uma mulher nobre (Rt 3.10-13). Essa reação extraordinária é melhor atribuída à inspiração de Deus enchendo seu coração e sua língua quando ele acordou.

Deus opera por meio de processos legais (Rute 4.1-12)

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Boaz aceita o pedido de Rute para se casar com ela, se seu parente mais próximo renunciasse ao seu direito de fazê-lo. Ele não perde tempo em providenciar a resolução legal da questão (Rt 4.1-12). A essa altura, o leitor já sabe que nada neste livro acontece por acaso e, quando, no dia seguinte, o parente mais próximo passa pelo portão onde Boaz estava sentado, isso também é atribuível à mão de Deus. Se Rute estivesse presente para os procedimentos legais no portão, seu coração teria sucumbido quando o homem que tinha prioridade aos direitos anunciou que reivindicaria as terras de Elimeleque. No entanto, quando Boaz o lembrou de que teria de casar com Rute para ficar com a terra, então ele mudou de ideia, e a esperança dela aumentaria. O que o levou a mudar de ideia? Ele diz que havia se lembrado de que tinha uma obrigação legal contraída. “Não poderei resgatá-la, pois poria em risco a minha propriedade” (Rt 4.6). A desculpa é torta e fraca. No entanto, é suficiente para Boaz, cujo discurso de aceitação do veredicto é um modelo de clareza e lógica. O caso poderia facilmente ter seguido de outra maneira, mas parece que o resultado foi guiado por Deus desde o início.

Deus opera por meio da fecundidade da gravidez (Rute 4.13-18)

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Em Rute 4.13, encontramos apenas a segunda vez no livro (além de Rt 1.6) em que um acontecimento é expressamente atribuído à mão de Deus. “Boaz casou-se com Rute, e ela se tornou sua mulher. Boaz a possuiu e o Senhor concedeu que ela engravidasse dele e desse à luz um filho.” Enquanto o termo hebraico para concepção/gravidez (herayon) ocorre em outros lugares apenas em Gênesis 3.16 e Oseias 9.11, a expressão idiomática em particular “conceder/engravidar” ocorre apenas aqui. Devemos interpretar essa declaração no contexto do casamento aparentemente de dez anos e sem filhos de Rute com Malom (Rt 1.4). Depois da fidelidade de Rute em vir a Israel com Noemi, depois da fidelidade de Boaz em providenciar para que Rute respigasse seus campos e sua fidelidade em servir como seu parente resgatador, depois da oração fiel das testemunhas no portão (Rt 1.11-12), e, aparentemente, assim que Rute e Boaz consumaram o casamento, Deus concedeu que Rute concebesse um filho. Todo esforço humano, mesmo a relação sexual, depende de Deus para a realização dos objetivos pretendidos ou desejados (Rt 4.13-15; cf. 1.4).

O nascimento de qualquer filho é um presente de Deus, mas houve uma história maior no nascimento de Obede, filho de Rute e Boaz. Ele se tornaria o avô de Davi, o maior rei de Israel (Rt 4.22) e, finalmente, o ancestral de Jesus, o Messias (Mt 1.5,16-17). Dessa forma, a estrangeira Rute se tornou uma bênção para Israel e para todos que seguem Jesus até hoje.

Conclusões sobre o livro de Rute

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O livro de Rute apresenta uma poderosa história de Deus em ação, direcionando acontecimentos de todos os lados para cuidar de seu povo e, mais importante, para cumprir seus propósitos. A fidelidade — tanto a fidelidade de Deus às pessoas quanto a fidelidade das pessoas a Deus — é exercida por meio do trabalho e da produtividade resultante. Os personagens do livro trabalham com diligência, justiça, generosidade e engenhosidade, de acordo com a lei e a inspiração de Deus. Eles reconhecem a imagem de Deus nos seres humanos e trabalham juntos em harmonia e compaixão.

A partir dos acontecimentos no livro de Rute, podemos concluir que os cristãos de hoje devem reconhecer não apenas a dignidade, mas também o valor do trabalho. O trabalho traz glória a Deus. Traz benefícios para os outros. Ele serve ao mundo em que vivemos. Como cristãos hoje, podemos estar acostumados a reconhecer a mão de Deus mais claramente no trabalho de pastores, missionários e evangelistas, mas o trabalho deles não é o único legítimo no Reino de Deus. O livro de Rute nos lembra que o trabalho comum, como a agricultura, é um chamado cheio de fé, seja ele realizado por ricos proprietários de terras ou estrangeiros atingidos pela pobreza. Alimentar nossa família é um trabalho sagrado, e qualquer pessoa que tenha meios de ajudar os outros a alimentar sua família se torna uma bênção de Deus. Toda ocupação legítima é obra de Deus. Por meio de nós, Deus cria, projeta, organiza, embeleza, ajuda, lidera, cultiva, cuida, cura, capacita, informa, decora, ensina e ama. Somos as asas de Deus.

Nosso trabalho honra a Deus quando tratamos os colegas de trabalho com honra e dignidade, independentemente de termos o poder de moldar as condições de trabalho dos outros ou de nos colocarmos em risco ao defender os outros. Vivemos nossa aliança com Deus quando trabalhamos para o bem de nossos semelhantes — especialmente os marginalizados social e economicamente. Honramos a Deus quando buscamos os interesses dos outros e fazemos tudo o que está ao nosso alcance para humanizar seu trabalho e promover seu bem-estar.