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Números e trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Numbers bible commentary free

Introdução a Números

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O livro de Números contribui significativamente para nossa compreensão e prática do trabalho. O livro apresenta o povo de Deus, Israel, lutando para trabalhar de acordo com os propósitos de Deus em tempos difíceis. Em suas lutas, eles experimentam conflitos sobre identidade, autoridade e liderança, enquanto atravessam o deserto em direção à terra prometida de Deus. A maior parte da percepção que podemos obter para nosso trabalho vem pelo exemplo, onde vemos o que agrada a Deus e o que não agrada a Deus, e não por uma série de mandamentos.

O livro é chamado de “Números” em português porque registra uma série de censos que Moisés fez das tribos de Israel. Censos foram feitos para quantificar os recursos humanos e naturais disponíveis para os assuntos econômicos e governamentais, incluindo o serviço militar (Nm 1.2-3; 26.2-4), deveres religiosos (Nm 4.2-3,22-23), tributação (Nm 3.40-48) e agricultura (Nm 26.53-54). A alocação eficaz de recursos depende de dados confiáveis. Mas esses censos servem como estrutura para uma narrativa que vai além de apenas relatar os números. Nas narrativas, as estatísticas são frequentemente mal utilizadas, levando à dissensão, rebelião e agitação social. O raciocínio quantitativo em si não é o problema — o próprio Deus ordena censos (Nm 1.1-2). Mas, quando a análise numérica é usada como pretexto para se desviar da palavra do Senhor, segue-se o desastre (Nm 14.20-25). Um eco distante dessa manipulação de números como um substituto para o raciocínio moral genuíno pode ser ouvido nos escândalos contábeis e nas crises financeiras de hoje.

O relato de Números se passa naquela região desértica que não é o Egito nem a terra prometida. O título hebraico do livro, bemidbar, é uma abreviação para a frase “no deserto do Sinai” (Nm 1.1), que descreve a ação principal do livro — a jornada de Israel pelo deserto. A nação progride do Sinai em direção à terra prometida, terminando com a chegada de Israel à região a leste do rio Jordão. Eles chegaram a esse local porque a “mão poderosa” de Deus (Êx 6.1) os libertou da escravidão no Egito, a história contada no livro do Êxodo. Uma coisa era tirar o povo da escravidão; tirar a escravidão do povo provaria ser outra coisa bem diferente. Em suma, o livro de Números fala sobre a vida com Deus durante a jornada para o destino de suas promessas, uma jornada que nós, como povo de Deus, ainda estamos empreendendo. Na experiência de Israel no deserto, encontramos recursos para os desafios em nossa vida e trabalho hoje, e podemos obter encorajamento da ajuda sempre presente de Deus.

Deus numera e ordena a nação de Israel (Números 1.1—2.34)

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Antes do Êxodo, Israel nunca havia sido uma nação. Israel começou como a família de Abraão e Sara e seus descendentes, prosperou como um clã sob a liderança de José, mas caiu em escravidão como minoria étnica no Egito. A população israelita no Egito cresceu e se tornou do tamanho de uma nação (Êx 12.37), mas, como povo escravizado, não lhes era permitido instituições ou organizações nacionais. Eles haviam partido do Egito como uma multidão desorganizada de refugiados (Êx 12.34-39), que agora precisava ser organizada em uma nação funcional.

Deus instrui Moisés a enumerar a população (o primeiro censo, Nm 1.1-3) e criar um governo provisório chefiado por líderes tribais (Nm 1.4-16). Sob a direção adicional de Deus, Moisés nomeia uma ordem religiosa, os levitas, e os equipa com recursos para construir o tabernáculo da aliança (Nm 1.48-54). Ele estabelece acampamentos para todo o povo, depois arregimenta os homens em idade de combate em escalões militares e nomeia comandantes e oficiais (Nm 2.1-9). Ele cria uma burocracia, delega autoridade a líderes qualificados e institui um judiciário civil e um tribunal de apelação (isso é dito em Êx 18.1-27, em vez de Números). Antes que Israel possa entrar na posse da terra prometida (Gn 28.15) e cumprir sua missão de abençoar todas as nações (Gn 18.18), a nação teve de ser organizada de forma eficaz.

As atividades de organização, liderança, governança e desenvolvimento de recursos dirigidas por Moisés encontram paralelos em praticamente todos os setores da sociedade atual — negócios, governo, forças armadas, educação, religião, organizações sem fins lucrativos, associações de bairro e até famílias. Nesse sentido, Moisés é o padrinho de todos os gerentes, contadores, estatísticos, economistas, oficiais militares, governadores, juízes, policiais, diretores, líderes comunitários e uma infinidade de outros. A atenção detalhada que Números dá à organização de obreiros, ao treinamento de líderes, à criação de instituições civis, ao desenvolvimento de capacidades logísticas, à estruturação de defesas e ao desenvolvimento de sistemas contábeis sugere que Deus ainda orienta e capacita a organização, o governo, os recursos e a manutenção das estruturas sociais hoje.

Os levitas e a obra de Deus (Números 3—8)

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O texto de Números 3—8 se concentra no trabalho dos sacerdotes e levitas. (Os levitas são a tribo cujos homens servem como sacerdotes — em grande parte, os termos são intercambiáveis ​​em Números.) Eles têm o papel essencial de mediar a redenção de Deus para todo o povo (Nm 3.40-51). Como outros trabalhadores, eles são enumerados e organizados em unidades de trabalho, embora estejam isentos do serviço militar (Nm 4.2-3,22-23). Pode parecer que o trabalho deles receba um destaque como mais importante do que o trabalho dos outros, pois lida com as “coisas santíssimas” (Nm 4.4). É verdade que a atenção particularmente detalhada dada à Tenda do Encontro e seus utensílios parece elevar o papel dos sacerdotes a um nível mais alto do que o restante do povo. Mas o texto, na verdade, retrata o quão intrincadamente seu trabalho está relacionado ao trabalho de todos os israelitas. Os levitas ajudam todas as pessoas a alinharem sua vida e seu trabalho com a lei e os propósitos de Deus. Além disso, o trabalho realizado pelos levitas na tenda é bastante semelhante ao trabalho da maioria dos israelitas — desmontar, mover e montar acampamento, acender fogo, lavar roupa, abater animais e processar grãos. A ênfase, então, está na integração do trabalho dos levitas com o de todos os outros. Números dá uma atenção cuidadosa ao trabalho dos sacerdotes de mediar a presença de Deus, não porque o trabalho religioso seja a ocupação mais importante, mas porque Deus é o ponto central de cada ocupação.

Oferecendo a Deus os produtos de nosso trabalho (Números 4 e 7)

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O Senhor dá instruções detalhadas para montar a Tenda do Encontro, o local de sua presença com Israel. A Tenda do Encontro requer materiais produzidos por uma grande variedade de trabalhadores — couro fino, tecido azul, tecido vermelho, cortinas, varas e molduras, pratos, travessas, tigelas, jarros, candelabros, apagadores, bandejas, óleo e vasos para guardá-lo, um altar de ouro, panelas de fogo, garfos, pás, bacias e incenso aromático (Nm 4.5-15). (Para uma descrição semelhante, veja “O tabernáculo”, em Êxodo 31.1-12.) No decorrer da adoração, o povo traz para ela outros produtos do trabalho humano, como ofertas de bebidas (Nm 4.7 e outros), grãos (4.16 e outros), óleo (7.13 e outros), cordeiros e ovelhas (6.12 e outros), cabras (7.16 e outros) e metais preciosos (7.25 e outros). Praticamente todas as ocupações — na verdade, quase todas as pessoas — em Israel são necessárias para tornar possível a adoração a Deus na Tenda do Encontro.

Os levitas alimentavam suas famílias principalmente com uma parte dos sacrifícios. Estes foram distribuídos aos levitas porque, ao contrário das outras tribos, eles não receberam terras para cultivar (Nm 18.18-32). Os levitas não recebiam sacrifícios porque eles eram homens santos, mas porque, presidindo os sacrifícios, levavam todos a uma relação santa com Deus. O povo, e não os levitas, era o principal beneficiário dos sacrifícios. Na verdade, o próprio sistema sacrificial era um componente do sistema de suprimento de alimentos de Israel. Além de algumas porções queimadas no altar e da porção dos levitas, mencionada acima, as partes principais das ofertas de cereais e de animais eram destinadas ao consumo daqueles que as traziam. [1] Assim, todos em Israel foram, em parte, alimentados pelo sistema. No geral, o sistema sacrificial não servia para isolar algumas coisas sagradas do restante da produção humana, mas para mediar a presença de Deus em toda a vida e obra da nação.

Da mesma forma, hoje, os produtos e serviços de todo o povo de Deus são expressões do poder de Deus em ação nos seres humanos, ou pelo menos deveriam ser. O Novo Testamento desenvolve esse tema explicitamente a partir do Antigo Testamento. “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Todo o trabalho que fazemos, quando a bondade de Deus é proclamada, é um trabalho sacerdotal. Os itens que produzimos — couro e tecidos, pratos e recipientes, materiais de construção, planos de aula, previsões financeiras e todo o resto — são itens sacerdotais. O trabalho que fazemos — lavar roupas, plantar, criar filhos e todas as outras formas de trabalho legítimo — é um serviço sacerdotal a Deus. Todos nós devemos perguntar: “Como meu trabalho reflete a bondade de Deus, torna-o visível para aqueles que não o reconhecem e serve a seus propósitos no mundo?” Todos os crentes, não apenas o clero, são descendentes dos sacerdotes e levitas em Números, fazendo a obra de Deus todos os dias.

Arrependimento, restituição e reconciliação (Números 5.5-10)

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Um papel essencial do povo de Deus é levar reconciliação e justiça a cenas de conflito e abuso. Embora o povo de Israel se comprometesse a obedecer aos mandamentos de Deus, eles rotineiramente falhavam, assim como nós fazemos hoje. Muitas vezes, isso acontecia na forma de maltratar outras pessoas. “Quando um homem ou uma mulher prejudicar outra pessoa e, portanto, ofender o Senhor, será culpado” (Nm 5.6). Por meio da obra dos levitas, Deus fornece um meio de arrependimento, restituição e reconciliação após tais erros. Um elemento essencial é que a parte culpada não apenas retribua a perda que causou, mas também acrescente 20% (Nm 5.7), presumivelmente como uma forma de sofrer a perda em solidariedade à vítima. (Esta passagem é paralela à oferta pela culpa descrita em Levítico; veja “O significado da oferta pela culpa”, em Levítico e o trabalho.)

O Novo Testamento dá um exemplo vívido desse princípio em ação. Quando o cobrador de impostos Zaqueu vem para a salvação em Cristo, ele se oferece para devolver quatro vezes a quantia que cobrou a mais de seus concidadãos. Um exemplo mais moderno — embora não fundamentado explicitamente na Bíblia — é a prática crescente de hospitais admitirem erros, pedirem desculpas e oferecerem restituição financeira imediata e assistência aos pacientes e famílias envolvidas. [1] Mas você não precisa ser um coletor de impostos ou um médico para cometer erros. Todos nós temos amplas oportunidades de confessar nossos erros e nos oferecer para compensá-los e muito mais. É no local de trabalho que grande parte desse desafio ocorre. No entanto, realmente fazemos isso ou tentamos encobrir nossas falhas e minimizar nossa responsabilidade?

A bênção de Arão para o povo (Números 6.22-27)

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Um dos principais papéis dos levitas é invocar a bênção de Deus. Deus ordena estas palavras para a bênção sacerdotal:

O Senhor te abençoe e te guarde;
o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça;
o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê paz. (Nm 6.24-26)

Deus abençoa as pessoas de inúmeras maneiras — espiritual, mental, emocional e material. Mas o foco aqui é abençoar as pessoas com palavras. Nossas boas palavras se tornam o momento da graça de Deus na vida das pessoas. “Assim eles invocarão o meu nome sobre os israelitas, e eu os abençoarei”, Deus promete (Nm 6.27).

As palavras que usamos em nosso ambiente de trabalho têm o poder de abençoar ou amaldiçoar, edificar ou destruir outros. Nossa escolha de palavras muitas vezes tem mais poder do que imaginamos. A bênção em Números 6.24-26 declara que Deus o “guardará”, concederá “graça” a você e lhe dará “paz”. No trabalho, nossas palavras podem “guardar” outra pessoa — ou seja, tranquilizar, proteger e apoiar. “Se precisar de ajuda, venha até mim. Não vou usar isso contra você.” Nossas palavras podem ser cheias de “graça”, fazendo com que uma situação seja melhor do que seria de outra forma. Podemos aceitar a responsabilidade por um erro compartilhado, por exemplo, em vez de transferir a culpa e minimizar nosso papel. Nossas palavras podem trazer paz ao restaurar relacionamentos que foram rompidos. “Percebo que as coisas deram errado entre nós, mas quero encontrar uma maneira de ter um bom relacionamento novamente”, por exemplo. Claro, há momentos em que temos de contestar, criticar, corrigir e talvez punir os outros no trabalho. Mesmo assim, podemos escolher entre criticar a ação errada ou condenar a pessoa como um todo. Por outro lado, quando os outros se saem bem, podemos optar por elogiar em vez de ficar em silêncio, apesar do pequeno risco para nossa reputação ou situação.

Aposentadoria do serviço regular (Números 8.23-26)

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Números contém a única passagem da Bíblia que especifica um limite de idade para o trabalho. Os levitas começaram em seu serviço ainda jovens, sendo fortes o suficiente para erguer e transportar o tabernáculo com todos os seus elementos sagrados. Os censos de Números 4 não incluíam nomes de levitas com mais de cinquenta anos, e Números 8.25 especifica que, aos cinquenta anos de idade, os levitas deviam se aposentar de seus deveres. Além do trabalho pesado do tabernáculo, o trabalho dos levitas também incluía inspecionar de perto as doenças da pele (Lv 13). Em uma época anterior aos óculos de grau, praticamente ninguém com mais de cinquenta anos seria capaz de ver qualquer coisa de perto. O ponto aqui não é definir que cinquenta anos seja a idade universal para a aposentadoria, mas mostrar que chegará um momento em que um corpo que envelhece terá menos eficácia no trabalho. O processo varia muito entre indivíduos e ocupações. Moisés tinha oitenta anos quando começou seus deveres como líder de Israel (Êx 7.7).

A aposentadoria, no entanto, não foi o fim do trabalho dos levitas. O objetivo não era retirar do serviço os trabalhadores produtivos, mas redirecionar seu serviço para uma direção mais madura, dadas as condições de sua ocupação. Após a aposentadoria, eles ainda podiam “ajudar seus companheiros de ofício na responsabilidade de cuidar da Tenda do Encontro” (Nm 8.26). Às vezes, algumas faculdades — juízo, sabedoria e perspicácia, talvez — podem realmente melhorar com o avançar da idade. Ao “ajudar seus irmãos”, os levitas mais velhos passaram a adotar diferentes maneiras de servir suas comunidades. As noções modernas de aposentadoria, que consistem em deixar de trabalhar e dedicar tempo exclusivamente ao lazer, não são encontradas na Bíblia.

Como os levitas, não devemos buscar a cessação total do trabalho significativo na velhice. Podemos querer ou precisar abrir mão de nossas posições, mas nossas habilidades e sabedoria ainda são valiosas. Podemos continuar a servir aos outros em nossas ocupações por meio da liderança em associações comerciais, organizações sociais, conselhos de administração e órgãos de licenciamento. Podemos prestar consultoria, treinar, ensinar ou orientar. Podemos finalmente ter tempo para servir ao máximo na igreja, nos clubes, nos cargos eletivos ou nas organizações de serviço. Talvez possamos investir mais tempo com nossa família, ou, se for tarde demais para isso, na vida de outras crianças e jovens. Muitas vezes, nosso novo serviço mais valioso é treinar e encorajar (abençoar) os trabalhadores mais jovens (veja Nm 6.24-27).

Dadas essas possibilidades, a velhice pode ser um dos períodos mais satisfatórios da vida de uma pessoa. Infelizmente, a aposentadoria deixa muitas pessoas de lado no momento em que seus dons, recursos, tempo, experiência, redes de relacionamentos, influência e sabedoria podem ser mais benéficos. Alguns decidem buscar apenas lazer e entretenimento ou simplesmente desistir da vida. Outros acham que as regulamentações relacionadas à idade e a marginalização social os impedem de trabalhar tão plenamente quanto desejam. Um artigo de Ian Rose para a BBC, “Por que mentimos sobre estar aposentado”, explora os desafios que as pessoas enfrentam na aposentadoria, especialmente se entram na aposentadoria esperando parar de trabalhar pelo resto da vida.

Há muito pouco material nas Escrituras de onde podemos extrair uma teologia abrangente sobre a aposentadoria. Mas, à medida que envelhecemos, cada um de nós pode se preparar para a aposentadoria com tanto ou mais cuidado quanto nos preparamos para o trabalho. Quando jovens, podemos respeitar e aprender com colegas mais experientes. Em todas as idades, podemos trabalhar em prol de políticas e práticas de aposentadoria mais justas e produtivas para trabalhadores mais jovens e mais velhos.

O desafio à autoridade de Moisés (Números 12)

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Em Números 12, o irmão e a irmã de Moisés, Arão e Miriã, tentam iniciar uma revolta contra sua autoridade. Eles parecem ter uma reclamação justificável. Moisés ensina que os israelitas não devem se casar com estrangeiros (Dt 7.3), mas ele mesmo tem uma esposa estrangeira (Nm 12.1). Se essa reclamação tivesse sido sua verdadeira preocupação, eles poderiam tê-la levado a Moisés ou ao conselho de anciãos que ele havia formado recentemente (Nm 11.16-17) para resolução. Em vez disso, eles se mobilizam para se colocar no lugar de Moisés como líderes da nação. Na realidade, sua reclamação foi apenas um pretexto para começar uma rebelião geral com o objetivo de se elevar a posições de poder supremo.

Deus os pune severamente em nome de Moisés. Ele relembra que escolheu Moisés como seu representante para Israel, falando “face a face” com Moisés, e confia a ele “toda a minha casa” (Nm 12.7-8). “Por que não temeram criticar meu servo Moisés?” ele questiona (Nm 12.8). Como não recebe resposta, Números nos diz que “a ira do Senhor acendeu-se contra eles” (Nm 12.9). Seu castigo recai primeiro sobre Miriã, que se torna leprosa a ponto de quase morrer, e Arão implora a Moisés que lhes perdoe (Nm 12.10-12). A autoridade do líder escolhido por Deus deve ser respeitada, pois rebelar-se contra esse líder é rebelar-se contra o próprio Deus.

Quando temos queixas contra aqueles que estão em posição de autoridade

Deus estava presente de forma singular na liderança de Moisés. “Em Israel nunca mais se levantou profeta como Moisés, a quem o Senhor conheceu face a face” (Dt 34.10). Os líderes de hoje não manifestam a autoridade de Deus face a face, como Moisés fez. No entanto, Deus ordena que respeitemos a autoridade de todos os líderes, “pois não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13.1-3). Isso não significa que os líderes nunca devam ser questionados, responsabilizados ou mesmo substituídos. Significa que, sempre que tivermos uma queixa contra aqueles que detêm autoridade legítima — como Moisés tinha —, nosso dever é discernir as maneiras pelas quais a liderança deles é uma manifestação da autoridade de Deus. Devemos respeitá-los por qualquer porção da autoridade de Deus que eles realmente detenham, mesmo quando procuramos corrigi-los, limitá-los ou até removê-los do poder.

Um detalhe revelador da história é que o propósito de Arão e Miriã era se colocar em posições de poder. A sede de poder nunca pode ser uma motivação legítima para se rebelar contra a autoridade. Se tivermos uma queixa contra nosso chefe, nossa esperança deve ser primeiramente resolvê-la com ele. Se o abuso de poder ou a incompetência do chefe impedirem isso, nosso próximo objetivo seria substituí-lo por alguém íntegro e capaz. Mas, se nosso propósito é ampliar nosso próprio poder, então nosso objetivo é falso e perdemos até mesmo a capacidade de perceber se o chefe está agindo legitimamente ou não. Nossos próprios desejos nos tornaram incapazes de discernir a autoridade de Deus na situação.

Quando os outros se opõem à nossa autoridade

Embora Moisés fosse poderoso e estivesse certo, ele responde ao desafio da liderança com gentileza e humildade. “Ora, Moisés era um homem muito paciente [“humilde”, NVT], mais do que qualquer outro que havia na terra” (Nm 12.3). Ele permanece com Arão e Miriã durante todo o episódio, mesmo quando eles começam a receber sua merecida punição. Ele intercede para que Deus restaure a saúde de Miriã, e consegue reduzir sua punição de morte para sete dias de isolamento fora do acampamento (Nm 12.13-15). Ele os mantém na liderança máxima da nação.

Se estivermos em posições de autoridade, provavelmente enfrentaremos oposição, tal como Moisés enfrentou. Considerando que nós, assim como Moisés, chegamos à autoridade legitimamente, podemos ficar ofendidos quando enfrentamos oposição e até reconhecê-la como uma ofensa contra o propósito de Deus para nós. Podemos muito bem nos sentir no direito de tentar defender nossa posição e derrotar aqueles que a estão atacando. No entanto, assim como Moisés, devemos cuidar primeiro das pessoas sobre as quais Deus nos colocou em posição de autoridade, incluindo aqueles que se opõem a nós. Eles podem ter queixas legítimas contra nós ou podem estar aspirando à tirania. Podemos ter sucesso em resistir a eles ou podemos perder. Podemos ou não continuar na organização, assim como eles também podem ou não continuar. Podemos encontrar um terreno comum, ou podemos achar impossível restaurar boas relações de trabalho com nossos oponentes. No entanto, em todas as situações, temos o dever de humildade, o que significa que agimos para o bem daqueles que Deus nos confiou, mesmo às custas de nosso conforto, poder, prestígio e autoimagem. Saberemos que estamos cumprindo esse dever quando estivermos defendendo aqueles que se opõem a nós, como Moisés fez com Miriã.

Quando a liderança leva à impopularidade (Números 13—14)

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Outro desafio à autoridade de Moisés surge em Números 13—14. O Senhor pede que Moisés envie espiões à terra de Canaã, a fim de se prepararem para a conquista. Os espiões são nomeados de todas as tribos (Nm 13.18-20) e devem obter informações tanto na área militar quanto econômica. Isso significa que o relatório dos espiões poderia ser usado não apenas para planejar a conquista, mas também para iniciar discussões sobre a alocação de território entre as tribos israelitas. O relatório dos espiões confirma que a terra é muito boa, “onde manam leite e mel” (Nm 13.27). No entanto, os espias também relatam que “o povo que lá vive é poderoso, e as cidades são fortificadas e muito grandes” (Nm 13.28). Moisés e seu tenente, Calebe, usam a inteligência para planejar o ataque, mas os espiões ficam com medo e declaram que a terra não pode ser conquistada (Nm 13.30-32). Seguindo a liderança dos espiões, o povo de Israel se rebela contra o plano do Senhor e decide encontrar um novo líder que os leve de volta à escravidão no Egito. Apenas Arão, Calebe e um jovem chamado Josué permanecem com Moisés.

Mas Moisés permanece firme, apesar da impopularidade do plano. O povo está prestes a substituí-lo, mas ele se apega ao que o Senhor lhe revelou como certo. Ele e Arão imploram ao povo que cesse sua rebelião, mas sem sucesso. Finalmente, o Senhor repreende Israel por sua falta de fé e declara que os ferirá com uma peste mortal (Nm 14.5-12). Ao abandonar o plano, eles se lançaram em uma situação ainda pior — destruição iminente e total. Somente Moisés, firme em seu propósito original, sabe como evitar o desastre. Ele apela ao Senhor para que perdoe o povo, como já havia feito antes. (Vimos em Números 12 como Moisés está sempre pronto a colocar o bem-estar de seu povo em primeiro lugar, mesmo às suas próprias custas.) O Senhor cede, mas declara que há consequências inevitáveis ​​para o povo. Nenhum daqueles que se juntaram à rebelião terá permissão para entrar na terra prometida (Nm 14.20-23).

As ações de Moisés demonstram que os líderes são escolhidos para assumir um compromisso decisivo, não para se insuflar no vento da popularidade. A liderança pode ser um dever solitário e, se estivermos em posição de liderança, podemos ser severamente tentados a concordar com a opinião popular. É verdade que bons líderes ouvem as opiniões dos outros. Mas, quando um líder sabe qual é a melhor decisão a ser tomada e testou esse conhecimento da melhor maneira possível, ele tem a responsabilidade de fazer o que é melhor, não o que é mais popular.

Na situação de Moisés, não havia dúvida sobre o que deveria ser feito. O Senhor ordenou a Moisés que ocupasse a terra prometida. Como vimos, o próprio Moisés permaneceu humilde em seu comportamento, mas não vacilou em sua direção. Ele, na verdade, não conseguiu cumprir o mandamento do Senhor. Se as pessoas não o seguirem, o líder não poderá cumprir a missão sozinho. Nesse caso, a consequência para o povo foi o desastre de uma geração inteira que perdeu a terra que Deus havia escolhido para eles. Pelo menos o próprio Moisés não contribuiu para o desastre, mudando seu plano em resposta às opiniões deles.

A era moderna está repleta de exemplos de líderes que cederam à opinião popular. A rendição do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain às exigências de Hitler em Munique, em 1938, vem prontamente à mente. Em contraste, Abraham Lincoln se tornou um dos maiores presidentes dos Estados Unidos, recusando-se firmemente a ceder à opinião popular para acabar com a Guerra Civil Americana, aceitando a divisão da nação. Embora tivesse a humildade de reconhecer a possibilidade de estar errado (“como Deus nos permite ver o que é certo”), ele também teve a coragem de fazer o que sabia ser certo, apesar da enorme pressão para ceder. O livro Leadership on the Line (Liderança na linha), de Ronald Heifetz e Martin Linsky, explora o desafio de permanecer aberto às opiniões dos outros, mantendo uma liderança firme em tempos de desafio. [1] (Para mais informações sobre este episódio, veja, “Israel se recusa a entrar na terra prometida” em Deuteronômio 1.19-45.)

Oferecendo a Deus nossos primeiros frutos (Números 15.20-21; 18.12-18)

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Com base no sistema sacrificial descrito em Números 4 e 7, duas passagens em Números 15 e 18 descrevem a oferta a Deus do primeiro fruto do trabalho e da terra. Além das ofertas descritas anteriormente, os israelitas devem oferecer a Deus “todos os primeiros frutos da terra” (Nm 18.13). Visto que Deus é o soberano que possui todas as coisas, tudo o que é produzido pela terra e pelas pessoas realmente já pertence a Deus. Quando as pessoas trazem os primeiros frutos ao altar, elas reconhecem que Deus é o dono de tudo, e não apenas do que sobra depois que elas atendem às suas próprias necessidades. Ao trazer os primeiros frutos antes de fazer uso do restante para si mesmos, eles expressam respeito pela soberania de Deus, bem como a esperança urgente de que Deus abençoará a produtividade contínua de seu trabalho e recursos. [1]

As ofertas e sacrifícios no sistema sacrificial de Israel são diferentes das dádivas e ofertas que fazemos hoje para a obra de Deus, mas o conceito de dar nossos primeiros frutos a Deus ainda é aplicável. Ao dar primeiro a Deus, reconhecemos que Deus é o dono de tudo o que temos. Portanto, damos a ele o nosso primeiro e melhor. Dessa forma, oferecer nossas primícias se torna uma bênção para nós, assim como foi para o antigo Israel.

Lembretes da aliança (Números 15.37-41)

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Uma breve passagem em Números 15 ordena aos israelitas que façam borlas ou franjas nos cantos de suas vestes, com um cordão azul em cada canto: “Quando virem essas borlas vocês se lembrarão de todos os mandamentos do Senhor, para que lhes obedeçam”. No trabalho, assim como em outros lugares, sempre há a tentação de que “sigam as inclinações do seu coração e dos seus olhos” (Nm 15.39). Na verdade, quanto mais diligentemente você prestar atenção ao seu trabalho (seus “olhos”), maior será a chance de que coisas em seu ambiente de trabalho que não são do Senhor o influenciem (seu “coração”). A resposta não é parar de prestar atenção no trabalho ou levá-lo menos a sério. Em vez disso, pode ser bom plantar lembretes que o lembrem de Deus e de seu caminho. Pode não ser borlas, mas pode ser uma Bíblia que cruzará sua visão, um alarme lembrando você de orar momentaneamente de vez em quando ou um símbolo que se possa usar ou carregar em um lugar que chame sua atenção. O objetivo não é se exibir para os outros, mas atrair seu próprio coração de volta a Deus. Embora isso seja algo pequeno, pode ter um efeito significativo. Ao fazer isso, “vocês se lembrarão de obedecer a todos os meus mandamentos, e para o seu Deus vocês serão um povo consagrado” (Nm 15.40).

A infidelidade de Moisés em Meribá (Números 20.2-13)

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O momento de maior fracasso de Moisés veio quando o povo de Israel voltou a reclamar, desta vez por comida e água (Nm 20.1-5). Moisés e Arão decidiram levar a queixa ao Senhor, que lhes ordenou que pegassem seu cajado e, na presença do povo, ordenassem que uma rocha providenciasse água suficiente para o povo e seu gado (Nm 20.6-8). Moisés fez como o Senhor instruiu, mas acrescentou dois floreios próprios. Primeiro, ele repreendeu o povo, dizendo: “Escutem, rebeldes, será que teremos que tirar água desta rocha para lhes dar?” Então ele bateu na rocha duas vezes com seu cajado. A água derramou em abundância (Nm 20.9-11), mas o Senhor ficou extremamente descontente com Moisés e Arão.

O castigo de Deus foi severo. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas, vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou” (Nm 20.12). Moisés e Arão, como todas as pessoas que se rebelaram contra o plano de Deus anteriormente (Nm 14.22-23), não terão permissão para entrar na terra prometida.

Argumentos acadêmicos sobre a ação exata pela qual Moisés foi punido podem ser encontrados em qualquer comentário, mas o texto de Números 20.12 cita diretamente a ofensa que estava implícita: “Vocês não confiaram em mim”. A liderança de Moisés vacilou no momento crucial em que ele deixou de confiar em Deus e começou a agir por impulso.

Honrar a Deus na liderança — como todos os líderes cristãos em todas as esferas devem tentar fazer — é uma responsabilidade aterrorizante. Podemos liderar um negócio, uma sala de aula, uma organização de ajuda humanitária, uma família ou qualquer outra organização, sempre devemos ter cuidado para não confundir nossa autoridade com a autoridade de Deus. O que podemos fazer para nos manter em obediência a Deus? Podemos nos reunir regularmente com um grupo de prestação de contas, orar diariamente sobre as tarefas da liderança, guardar um sábado semanal para descansar na presença de Deus e buscar a perspectiva de outros sobre a orientação de Deus — estes são métodos que alguns líderes empregam. Mesmo assim, a tarefa de liderar com firmeza, permanecendo totalmente dependente de Deus, está além da capacidade humana. Se o homem mais humilde sobre a face da terra (Nm 12.3) pôde falhar dessa maneira, nós também podemos. Pela graça de Deus, mesmo fracassos tão grandes quanto os de Moisés em Meribá, com consequências desastrosas nesta vida, não nos separam do cumprimento final das promessas de Deus. Moisés não entrou na terra prometida, mas o Novo Testamento o declara “fiel em toda a casa de Deus” e nos lembra da confiança que todos na casa de Deus têm no cumprimento de nossa redenção em Cristo (Hb 3.2-6).

Quando Deus fala por meio de fontes inesperadas (Números 22—24)

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Em Números 22—23, o protagonista não é Moisés, mas Balaão, um homem que morava perto do caminho pelo qual Israel lentamente passava em direção à terra prometida. Embora não fosse israelita, era sacerdote ou profeta do Senhor. O rei de Moabe reconheceu o poder de Deus nas palavras de Balaão, dizendo: “Sei que aquele que você abençoa é abençoado, e aquele que você amaldiçoa é amaldiçoado”. Temendo a força dos israelitas, o rei de Moabe enviou emissários pedindo a Balaão que fosse a Moabe e amaldiçoasse os israelitas para livrá-lo da ameaça percebida (Nm 22.1-6).

Deus informa a Balaão que ele escolheu Israel como uma nação abençoada e ordena a Balaão que não vá a Moabe nem amaldiçoe Israel (Nm 22.12). No entanto, depois de várias embaixadas do rei de Moabe, Balaão concorda em ir a Moabe. Suas hostes tentam suborná-lo para amaldiçoar Israel, mas Balaão avisa que ele fará apenas o que o Senhor ordenar (Nm 22.18). Deus parece concordar com esse plano, mas, enquanto Balaão monta seu jumento em direção a Moabe, um anjo do Senhor bloqueia seu caminho três vezes. O anjo é invisível para Balaão, mas a jumenta vê o anjo e se desvia a cada vez. Balaão fica furioso com a jumenta e começa a bater no animal com seu cajado. “Então o Senhor abriu a boca da jumenta, e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, que me golpeou três vezes?’” (Nm 22.28). Balaão conversa com a jumenta e percebe que o animal percebeu a orientação do Senhor com muito mais clareza do que Balaão. Os olhos de Balaão são abertos; ele vê o anjo e recebe instruções adicionais de Deus sobre como lidar com o rei de Moabe. “Vá com os homens, mas fale apenas o que eu lhe disser”, o Senhor reforça (Nm 22.35). Ao longo dos capítulos 23 e 24, o rei de Moabe continua a suplicar que Balaão amaldiçoe Israel, mas toda vez Balaão responde que o Senhor declara Israel abençoado. Finalmente, ele consegue dissuadir o rei de atacar Israel (Nm 24.12-25), poupando assim Moabe da destruição imediata pela mão do Senhor.

Balaão é semelhante a Moisés porque consegue seguir a orientação do Senhor, apesar das falhas pessoais às vezes. Como Moisés, ele desempenha um papel significativo no cumprimento do plano de Deus de levar Israel à terra prometida. Mas Balaão também é muito diferente de Moisés e da maioria dos outros heróis da Bíblia hebraica. Ele mesmo não é um israelita. E sua principal realização é salvar Moabe, não Israel, da destruição. Por essas duas razões, os israelitas ficariam bastante surpresos ao ler que Deus falou a Balaão de forma tão clara e direta, tal como falou aos próprios profetas e sacerdotes de Israel. Ainda mais surpreendente — tanto para Israel quanto para o próprio Balaão — é que a orientação de Deus, no momento crucial, veio a ele pela boca de um animal, uma jumenta humilde. De duas maneiras surpreendentes, vemos que a orientação de Deus não vem das fontes mais favorecidas pelas pessoas, mas das fontes que Deus escolhe. Se Deus escolhe falar por meio das palavras de um inimigo em potencial ou mesmo de um animal do campo, devemos prestar atenção.

A passagem não nos diz que a melhor fonte de orientação de Deus são necessariamente profetas estrangeiros ou jumentos, mas nos dá algumas dicas sobre como ouvir a voz de Deus. É fácil para nós ouvir a voz de Deus apenas de fontes que conhecemos. Isso geralmente significa ouvir apenas as pessoas que pensam como nós, pertencem a nossos círculos sociais ou falam e agem como nós. Isso pode significar que nunca prestamos atenção a outras pessoas que tomariam uma posição diferente da nossa. Torna-se fácil acreditar que Deus está nos dizendo exatamente o que já pensávamos. Os líderes muitas vezes reforçam isso cercando-se de um grupo restrito de assessores e conselheiros com ideias semelhantes. Talvez sejamos mais parecidos com Balaão do que gostaríamos de acreditar. Mas, pela graça de Deus, poderíamos de alguma forma aprender a ouvir o que Deus pode estar nos dizendo, mesmo por meio de pessoas em quem não confiamos ou de fontes com as quais não concordamos?

Propriedade da terra e direitos de propriedade (Números 26—27; 36.1-12)

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À medida que o tempo passa e a demografia muda, é necessário outro novo censo (Nm 26.1-4). Um propósito crucial desse censo é começar a desenvolver estruturas socioeconômicas para a nova nação. A produção econômica e a organização governamental devem ser organizadas em torno de tribos, com suas unidades menores de clãs e famílias. A terra deve ser dividida entre os clãs em proporção à sua população (Nm 26.52-56), e a designação deve ser feita aleatoriamente. O resultado é que cada família (família extensa) recebe um lote de terra suficiente para se sustentar. Ao contrário do Egito — e, mais tarde, do Império Romano e da Europa medieval — a terra não deve se tornar propriedade de uma classe de nobres e ser trabalhada por uma classe de plebeus ou escravos despossuídos. Em vez disso, cada família deve possuir seus próprios meios de produção agrícola. Fundamentalmente, a terra nunca pode ser perdida permanentemente pela família por meio de dívidas, impostos ou mesmo venda voluntária. (Veja Lv 25 para as proteções legais que visavam evitar que as famílias perdessem suas terras). Mesmo que uma geração de uma família falhe na agricultura e fique endividada, a próxima geração tem acesso à terra necessária para ganhar a vida.

O censo é enumerado de acordo com os chefes de tribos e clãs, cujos chefes de família recebem cada um uma cota. Mas, nos casos em que as mulheres são as chefes de família (por exemplo, se seus pais morrem antes de receber sua porção), as mulheres podem possuir terras e passá-las a seus descendentes (Nm 27.8). No entanto, isso poderia complicar o ordenamento de Israel, visto que uma mulher pode se casar com um homem de outra tribo. Aquela mulher acabaria transferindo a terra da tribo de seu pai para a de seu marido, enfraquecendo a estrutura social. A fim de evitar isso, o Senhor decreta que, embora as mulheres possam “casar-se com quem lhes agradar” (Nm 36.6), “nenhuma herança poderá passar de uma tribo para outra” (Nm 36.9). Esse decreto garante os direitos de todas as pessoas — inclusive as mulheres — de possuir propriedades e se casar como quiserem, em equilíbrio com a necessidade de preservar as estruturas sociais. As tribos devem respeitar os direitos de seus membros. Os chefes de família devem respeitar as necessidades da sociedade.

Em grande parte da economia de hoje, possuir terras não é o principal meio de ganhar a vida, e as estruturas sociais não estão organizadas em torno de tribos e clãs. Portanto, os regulamentos específicos em Números e Levítico não se aplicam diretamente aos dias de hoje. As condições atuais exigem diferentes soluções específicas. Leis sábias, justas e aplicadas com justiça, que respeitem a propriedade e as estruturas econômicas, os direitos individuais e o bem comum são essenciais em todas as sociedades. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “o avanço do Estado de direito nos níveis nacional e internacional é essencial para o crescimento econômico sustentado e inclusivo, o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza e da fome e a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. [1] Os cristãos têm muito a contribuir para o bom governo da sociedade, não apenas por meio da lei, mas também por meio da oração e da transformação da vida. E, cada vez mais, nós cristãos estamos descobrindo que, trabalhando juntos, podemos oferecer oportunidades eficazes para que pessoas marginalizadas tenham acesso permanente aos recursos necessários para prosperar economicamente. Um exemplo é Agros International, que é guiada por uma “bússola moral” cristã para ajudar famílias rurais pobres da América Latina a adquirir e cultivar terras com sucesso. [2]

Planejamento de sucessão (Números 27.12-23)

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Construir uma organização sustentável — neste caso, a nação de Israel — requer transições ordenadas de autoridade. Sem continuidade, as pessoas ficam confusas e com medo, as estruturas de trabalho desmoronam e os trabalhadores se tornam ineficazes, “como ovelhas sem pastor” (Nm 27.17). A preparação de um sucessor leva tempo. Líderes fracos podem ter medo de equipar alguém capaz de sucedê-los, mas grandes líderes como Moisés começam a desenvolver sucessores muito antes de esperarem deixar o cargo. A Bíblia não nos diz que processo Moisés usa para identificar e preparar Josué, exceto que ele ora pela orientação de Deus (Nm 27.16). Números nos diz que ele se certifica de reconhecer e apoiar publicamente Josué e de seguir o procedimento reconhecido para confirmar sua autoridade (Nm 27.17-21).

O planejamento da sucessão é responsabilidade tanto do executivo atual (como Moisés) quanto daqueles que exercem autoridade complementar (como Eleazar e os líderes da congregação), como vemos em Números 27.21. As instituições, sejam elas grandes como uma nação ou pequenas como um grupo de trabalho, precisam de processos eficazes para treinamento e sucessão.

Oferta diária: orar pelos outros (Números 28—29)

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Embora as pessoas façam ofertas individuais e familiares em horários determinados, também há um sacrifício em nome de toda a nação todos os dias (Nm 28.1-8). Há ofertas adicionais no sábado (Nm 28.9-10), luas novas (Nm 28.11-15), Páscoa (Nm 28.16-25) e a festa das semanas (Nm 28.26-31), as trombetas (Nm 29.1-6), a Expiação (Nm 29.7-10) e as tendas (Nm 29.12-40). Por meio dessas ofertas comunitárias, as pessoas recebem os benefícios da presença e do favor do Senhor, mesmo quando não estão pessoalmente na adoração.[1]

O sistema israelita de sacrifícios não está mais em operação e é impossível aplicá-lo diretamente à vida e ao trabalho hoje. Mas a importância de sacrificar, oferecer e adorar em benefício dos outros permanece (Rm 12.1-6). Alguns crentes — principalmente certas ordens de monges e freiras — passam a maior parte do dia orando por aqueles que não conseguem ou não adoram ou oram por conta própria. Em nosso trabalho, não seria certo negligenciar nossos deveres para orar. Mas, nos momentos em que oramos, podemos orar pelas pessoas com quem trabalhamos, especialmente se soubermos que ninguém mais está orando por elas. Afinal, somos chamados a trazer bênçãos ao mundo ao nosso redor (Nm 6.22-27). Certamente podemos seguir o que vemos em Números 28.1-8 orando diariamente. Orar todos os dias, ou várias vezes ao longo do dia, parece nos manter mais próximos da presença de Deus. A fé não é apenas para o sábado.

Honrando os compromissos (Números 30)

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O capítulo 30 de Números fornece um sistema elaborado para determinar a validade de promessas, juramentos e votos. A posição básica, no entanto, é simples: faça o que diz que fará.

Quando um homem fizer um voto ao Senhor ou um juramento que o obrigar a algum compromisso, não poderá quebrar a sua palavra, mas terá que cumprir tudo o que disse. (Nm 30.2)

Elaborações são dadas para lidar com exceções à regra, quando alguém faz uma promessa que excede sua autoridade. (Os regulamentos no texto tratam de situações em que certas mulheres estão sujeitas à autoridade de homens específicos.) Embora as exceções sejam válidas — você não pode fazer cumprir a promessa de uma pessoa que não tem autoridade para fazê-la, em primeiro lugar —, quando Jesus comentou essa passagem, propôs uma regra prática muito mais simples: não faça promessas que não pode ou não vai cumprir (Mt 5.33-37).

Compromissos relacionados ao trabalho podem nos levar a acumular elaborações, qualificações, exceções e justificativas para não fazer o que prometemos. Sem dúvida, muitas delas são razoáveis, como cláusulas de força maior em contratos, que dispensam uma parte de cumprir suas obrigações, se impedida por ordens judiciais, desastres naturais e similares. Não se limita a honrar a letra do contrato. Muitos acordos são feitos com um aperto de mão. Às vezes, há brechas. Podemos aprender a honrar a intenção do acordo e não apenas a letra da lei? A confiança é o ingrediente que faz com que o ambiente de trabalho funcione, e a confiança é impossível se prometermos mais do que podemos cumprir ou entregarmos menos do que prometemos. Isso não é apenas um fato da vida, mas um mandamento do Senhor.

Planejamento civil para cidades levíticas (Números 35.1-5)

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Ao contrário do restante das tribos, os levitas deveriam viver em cidades espalhadas por toda a terra prometida, onde poderiam ensinar a lei ao povo e aplicá-la nos tribunais locais. Números 35.2-5 detalha a quantidade de pastagens que cada cidade deve ter. Medindo a partir dos limites da cidade, a área de pastagem deveria se estender por cerca de 450 metros (lit., “mil côvados”) em cada direção: leste, sul, oeste e norte.

Jacob Milgrom mostrou que esse layout geográfico era um exercício realista de planejamento urbano.[1]


O diagrama mostra uma cidade com pastagens que se estendem além do diâmetro da cidade em cada direção. À medida que o diâmetro da cidade cresce e absorve o pasto mais próximo, mais pastagens são adicionadas, de modo que o pasto permaneça 450 metros além dos limites da cidade em cada direção. (No diagrama, as áreas mais claras permanecem do mesmo tamanho à medida que se movem para fora, mas as áreas com linhas ficam mais amplas à medida que o centro da cidade se alarga.)

Do lado de fora da cidade, meçam novecentos metros para o lado leste, para o lado sul, para o lado oeste e para o lado norte, tendo a cidade no centro (Nm 35.5).

Matematicamente, à medida que a cidade cresce, o mesmo acontece com a área de suas pastagens, mas a uma taxa menor do que a área do centro habitado da cidade. Isso significa que a população está crescendo mais rápido do que a área agrícola. Para que isso continue, a produtividade agrícola por metro quadrado deve aumentar. Cada pastor deve fornecer comida a mais pessoas, liberando mais pessoas para empregos industriais e de serviços. Isso é exatamente o que é necessário para o desenvolvimento econômico e cultural. Certamente, o planejamento urbano não causa aumento de produtividade, mas cria uma estrutura socioeconômica adaptada ao aumento da produtividade. É um exemplo notavelmente sofisticado de política civil que cria condições para um crescimento econômico sustentável.

Essa passagem em Números 35.5 ilustra novamente a atenção detalhada que Deus presta à capacitação do trabalho humano que sustenta as pessoas e cria bem-estar econômico. Se Deus se preocupa em instruir Moisés sobre o planejamento civil, com base no crescimento geométrico de pastagens, isso não sugere que o povo de Deus hoje deveria buscar vigorosamente todas as profissões, ofícios, artes, acadêmicos e outras disciplinas que sustentam e prosperam comunidades e nações? Talvez as igrejas e os cristãos pudessem fazer mais para incentivar e celebrar a excelência de seus membros em todos os campos de atuação. Talvez os obreiros cristãos pudessem fazer mais para se tornarem excelentes em seu trabalho, como forma de servir ao Senhor. Existe alguma razão para acreditar que um excelente planejamento urbano e econômico, uma creche ou um atendimento ao cliente trazem menos glória a Deus do que a adoração sincera, a oração ou o estudo da Bíblia?

Conclusões de Números

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O livro de Números mostra Deus trabalhando por meio de Moisés para ordenar e organizar a nova nação de Israel. A primeira parte do livro enfoca a adoração, que depende do trabalho dos sacerdotes em conjunto com trabalhadores de todas as profissões. O trabalho essencial daqueles que representam o povo de Deus não é realizar rituais, mas abençoar todas as pessoas com a presença de Deus e o amor reconciliador. Todos nós temos a oportunidade de trazer bênção e reconciliação por meio de nosso trabalho, quer pensemos em nós mesmos como sacerdotes ou não.

A segunda parte do livro de Números traça a ordem da sociedade à medida que as pessoas marcham em direção à terra prometida. Passagens em Números podem nos ajudar a obter uma perspectiva piedosa sobre questões de trabalho contemporâneas, como oferecer o fruto de nosso trabalho a Deus, resolução de conflitos, aposentadoria, liderança, direitos de propriedade, produtividade econômica, planejamento sucessório, relacionamentos sociais, honra aos compromissos e planejamento civil.

Os líderes em Números — especialmente Moisés — fornecem exemplos do que significa seguir ou não seguir a orientação de Deus. Os líderes precisam estar abertos à sabedoria de outras pessoas e de fontes inesperadas. No entanto, precisam permanecer firmes em seguir a orientação de Deus da melhor maneira possível. Devem ser ousados ​​o suficiente para confrontar reis, mas humildes o suficiente para aprender com os animais do campo. Ninguém no livro de Números é completamente bem-sucedido na tarefa, mas Deus permanece fiel ao seu povo em seus sucessos e falhas. Nossos erros têm consequências negativas reais, mas não eternas, e procuramos uma esperança além de nós mesmos para a realização do amor de Deus por nós. Vemos o Espírito de Deus guiando Moisés e ouvimos a promessa de Deus de também dar aos líderes que vierem depois de Moisés uma porção do Espírito de Deus. Com isso, nós mesmos podemos ser encorajados a buscar a orientação de Deus para as oportunidades e os desafios em nosso trabalho. Em tudo que fizermos, podemos ter certeza da presença de Deus conosco enquanto trabalhamos, pois ele nos diz: “Eu, o Senhor, habito entre os israelitas” (Nm 35.34) em cujos passos trilhamos.