Esdras, Neemias e Ester e o trabalho
Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do TrabalhoIntrodução a Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceA maioria dos cristãos não considera seu ambiente de trabalho muito favorável à sua fé. Geralmente, há oportunidades limitadas para o testemunho e atos explicitamente cristãos. Além disso, os trabalhadores podem se sentir pressionados a violar os requisitos éticos dos padrões bíblicos, explícita ou implicitamente. Em uma sociedade pluralista, alguns desses limites podem ser apropriados, mas podem fazer com que o ambiente de trabalho pareça um território estranho para os cristãos. Os livros de Esdras, Neemias e Ester descrevem como é para o povo de Deus trabalhar em ambientes hostis. Eles mostram o povo de Deus trabalhando em empregos que vão da construção à política e ao entretenimento, sempre em meio a ambientes abertamente hostis aos valores e aos planos de Deus. No entanto, ao longo do caminho, eles recebem ajuda surpreendente de descrentes nos mais altos cargos do poder cívico. O poder de Deus parece surgir para o bem de seu povo em lugares surpreendentes, mas eles enfrentam situações e decisões extremamente desafiadoras, sobre as quais nem sempre concordam.
Esdras teve de ponderar se deveria confiar em um governante incrédulo para proteger o povo judeu quando eles voltaram a Jerusalém e começaram a reconstruir o templo. Ele teve de encontrar apoio financeiro dentro do sistema econômico corrupto do Império Persa, mas ainda assim era fiel às leis de Deus sobre integridade econômica. Neemias teve de reconstruir os muros de Jerusalém, o que exigia que ele confiasse em Deus e fosse pragmático. Ele teve de liderar pessoas cuja motivação ia do altruísmo à ganância, e levá-las a superar seus próprios interesses divergentes para trabalhar tendo um propósito comum. Ester teve de sobreviver a um sistema que oprimia as mulheres e à intriga mortal dentro da corte real persa, mas permaneceu disposta a arriscar tudo para salvar seu povo do genocídio. Nossos títulos e instituições mudaram desde aqueles dias, mas, de muitas maneiras, nossos ambientes de trabalho hoje têm muito em comum — para melhor ou para pior — com os lugares onde Esdras, Neemias e Ester trabalharam. As situações, os desafios e as escolhas da vida real encontrados nesses livros bíblicos nos ajudam a desenvolver uma teologia do trabalho que importa em como vivemos a cada dia.
Esdras e Neemias
Em 587 a.C., os babilônios, sob o governo do rei Nabucodonosor, conquistaram Jerusalém. Eles mataram os líderes de Judá, saquearam o templo antes de incendiá-lo, destruíram grande parte da cidade, incluindo seus muros, e levaram a elite dos cidadãos de Jerusalém para a Babilônia. Lá, esses judeus viveram por décadas no exílio, sempre esperando que Deus libertasse e restaurasse Israel. Suas esperanças aumentaram em 539 a.C., quando a Pérsia, liderada pelo rei Ciro, derrotou a Babilônia. Pouco depois, Ciro emitiu um decreto convidando os judeus de seu reino a retornarem a Jerusalém e reconstruírem o templo e, portanto, sua vida como povo de Deus (Ed 1.1-4).
Os livros de Esdras e Neemias, originalmente duas partes de uma única obra, [1] narram aspectos cruciais dessa história de reconstrução, começando com o decreto de Ciro, em 539 a.C. Seu propósito, no entanto, não é simplesmente descrever o que aconteceu há muito tempo, como curiosidade de um antiquário. Em vez disso, Esdras e Neemias usam fatos históricos para ilustrar o tema da restauração. Esses livros mostram como Deus uma vez restaurou seu povo e como as pessoas desempenharam um papel central nessa obra de renovação. Esdras e Neemias foram escritos por um autor desconhecido, provavelmente no século IV a.C., [2] para encorajar o povo judeu a viver fielmente, mesmo sob domínio estrangeiro, para que pudessem ser participantes da obra divina de restauração, tanto presente como futura.
Esdras e Neemias são livros altamente teológicos, mas não abordam diretamente a teologia do trabalho. Eles não incluem imperativos legais ou visões proféticas que tenham a ver com nosso trabalho diário. As narrativas de Esdras e Neemias descrevem um trabalho árduo, no entanto, colocando implicitamente o trabalho em uma estrutura teológica. Assim, encontraremos sob a superfície desses livros um solo rico, do qual pode brotar uma teologia do trabalho. Em particular, Esdras e Neemias foram chamados para restaurar o Reino de Deus (Israel), em meio a um ambiente parcialmente hostil e parcialmente favorável. Os ambientes de trabalho de hoje também são parcialmente hostis e parcialmente favoráveis à obra de Deus. Isso nos encoraja a descobrir como nosso trabalho pode contribuir para a implantação do Reino de Deus no mundo de hoje.
Ester
O Livro de Ester conta a história de um episódio curioso durante a era descrita em Esdras e Neemias. O foco não está na restauração de Jerusalém, mas nos eventos que aconteceram na Pérsia, durante o reinado de Xerxes (485-465 a.C.; Xerxes é o nome grego, e ele também é conhecido pelo nome persa Assuero). A narrativa de Ester explica as origens da festa judaica de Purim. O autor não identificado deste livro escreveu, em parte, para explicar e incentivar a celebração desse feriado nacional (veja Ester 9.20-28). [3] Sua preocupação mais ampla era examinar como os judeus poderiam sobreviver e até prosperar como exilados em uma terra pagã e muitas vezes hostil. [4]
Em contraste com Esdras e Neemias, o livro de Ester não é explicitamente teológico. Na verdade, Deus mesmo nunca é mencionado. No entanto, nenhum leitor fiel poderia deixar de ver a mão de Deus por trás dos acontecimentos do livro. Isso convida o leitor a ponderar como Deus pode estar agindo no mundo, sem ser despercebido por aqueles que não têm olhos para ver.
Reconstruindo o templo (Esdras 1.1—6.22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Esdras começa com um decreto do rei Ciro, da Pérsia, permitindo que os judeus voltassem a Jerusalém para reconstruir o templo que havia sido destruído pelos babilônios em 587 a.C. (Ed 1.2-4). A introdução deste decreto especifica quando foi proclamado: “No primeiro ano do reinado de Ciro” (539-538 a.C., logo após a vitória persa sobre a Babilônia). Também nos apresenta um dos principais temas de Esdras-Neemias: a relação entre a obra de Deus e a obra humana. Ciro fez sua proclamação “a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias” e porque “o Senhor despertou o coração de Ciro” (Ed 1.1). Ciro estava fazendo seu trabalho como rei, buscando seus objetivos pessoais e institucionais. No entanto, esse foi o resultado da obra de Deus dentro dele, promovendo os propósitos do próprio Deus. Sentimos no primeiro versículo de Esdras que Deus está no controle, mas escolhe trabalhar por meio de seres humanos, até mesmo reis gentios, para realizar sua vontade.
Hoje em dia, os cristãos no ambiente de trabalho também vivem na confiança de que Deus é ativo por meio das decisões e ações de pessoas e instituições não cristãs. Ciro foi o instrumento escolhido por Deus, quer o próprio Ciro tenha reconhecido isso ou não. Da mesma forma, as ações de nosso chefe, colegas de trabalho, clientes e fornecedores, concorrentes, reguladores ou uma infinidade de outros atores podem estar promovendo a obra do Reino de Deus sem ser reconhecida por nós ou por eles. Isso deve nos prevenir tanto do desespero quanto da arrogância. Se pessoas e valores cristãos parecem ausentes do seu ambiente de trabalho, não se desespere — ainda assim Deus está trabalhando. Por outro lado, se você é tentado a ver a si mesmo ou a sua organização como um modelo de virtude cristã, cuidado! Deus pode estar realizando mais por meio daqueles que têm menos conexão visível com ele do que você imagina. Certamente, a obra de Deus por meio de Ciro — que permaneceu rico, poderoso e incrédulo, mesmo enquanto muitos do povo de Deus estavam se recuperando lentamente da pobreza do exílio — deve nos alertar para não esperarmos riqueza e poder como uma recompensa necessária por nosso trabalho fiel. Deus está usando todas as coisas para trabalhar em direção ao seu Reino, não necessariamente em direção ao nosso sucesso pessoal.
A obra de Deus continuou, pois muitos judeus se aproveitaram do decreto de Ciro. “Todos aqueles cujo coração Deus despertou” se prepararam para retornar a Jerusalém (Ed 1.5). Quando chegaram a Jerusalém, sua primeira tarefa foi construir o altar e oferecer sacrifícios sobre ele (Ed 3.1-3). Isso resume o principal tipo de trabalho narrado em Esdras e Neemias. Está intimamente associado às práticas sacrificiais do judaísmo do Antigo Testamento, que ocorriam no templo. O trabalho descrito nesses livros reflete e apoia a centralidade do templo e de suas ofertas na vida do povo de Deus. Adoração e trabalho caminham lado a lado através das páginas de Esdras e Neemias.
Por causa do foco de Esdras na reconstrução do templo, os trabalhos das pessoas são mencionados quando são relevantes para esse esforço. Assim, a lista de pessoas que retornam a Jerusalém cita especificamente “os sacerdotes, os levitas, os cantores, os porteiros e os servidores do templo” (Ed 2.70). O texto identifica “pedreiros e carpinteiros” porque eram necessários para o projeto de construção (Ed 3.7). Pessoas cujas habilidades não as equipavam para trabalhar diretamente no templo contribuíram para a tarefa por meio do fruto de seu trabalho, na forma de “ofertas voluntárias” (Ed 2.68). Assim, em certo sentido, a reconstrução do templo foi obra de todas as pessoas, que contribuíram de uma forma ou de outra.
Esdras identifica líderes políticos, além de Ciro, por causa de seu impacto — positivo ou negativo — no esforço de construção. Por exemplo, Zorobabel é mencionado como líder do povo. Ele era o governador do território que supervisionava a reconstrução do templo (Ag 1.1). Esdras menciona “o comandante Reum e o secretário Sinsai”, oficiais que escreveram uma carta se opondo à reconstrução do templo (Ed 4.8-10). Outros reis e oficiais aparecem de acordo com sua relevância para o projeto de reconstrução.
O projeto era sobre o templo, mas seria um erro pensar que Deus abençoa os diversos tipos de trabalho apenas quando são dedicados a um propósito religioso. A visão de Esdras incluía a restauração de toda a cidade de Jerusalém (Ed 4.13), não apenas do templo. Discutiremos esse ponto mais adiante quando chegarmos a Neemias, que realmente empreendeu o trabalho além do templo.
Esdras descreve vários esforços para reprimir a construção (Ed 4.1-23). Eles foram bem-sucedidos por um tempo, interrompendo o projeto do templo por cerca de duas décadas (Ed 4.24). Finalmente, Deus encorajou os judeus, por meio das profecias de Ageu e Zacarias, a retomar e concluir o trabalho (Ed 5.1). Além disso, Dario, rei da Pérsia, financiou o esforço de construção, na esperança de que o Senhor pudesse abençoar a ele e a seus filhos (Ed 6.8-10). Assim, o templo foi finalmente concluído, graças ao fato de Deus “mudar o coração do rei da Assíria, levando-o a dar-lhes força para realizarem a obra de reconstrução do templo de Deus” (Ed 6.22).
Como esse versículo deixa claro, os judeus realmente fizeram a obra de reconstrução do templo. No entanto, seu trabalho foi bem-sucedido por causa da ajuda de dois reis pagãos, um que inaugurou o projeto e outro que pagou por sua conclusão. Por trás desses esforços humanos estava a abrangente obra de Deus, que tocava o coração dos reis e encorajava seu povo por meio dos profetas. Como vimos, Deus trabalha muito além do que seu povo vê.
Restauração da vida da aliança, fase um: a obra de Esdras (Ed 7.1—10.44)
Voltar ao índice Voltar ao índiceIronicamente, o próprio Esdras só aparece no livro que leva seu nome a partir do capítulo 7. Esse homem instruído, sacerdote e mestre da lei, veio a Jerusalém com a bênção do rei persa Artaxerxes, mais de cinquenta anos após a reconstrução do templo. Sua tarefa era apresentar ofertas no templo em nome do rei e estabelecer a lei de Deus em Judá, tanto ensinando quanto designando líderes que cumprissem a lei (Ed 7.25-26).
Esdras não explicou o favor do rei em termos de boa sorte. Em vez disso, ele deu os créditos a Deus, “que pôs no coração do rei o propósito” de enviar Esdras a Jerusalém (Ed 7.27). Esdras tomou coragem e agiu de acordo com a ordem do rei, porque, como ele disse, “a mão do Senhor, meu Deus, esteva sobre mim” (Ed 7.28). Essa linguagem da mão de Deus estar sobre alguém é a favorita de Esdras, visto que aqui a expressão aparece seis vezes (Ed 7.6,9,28; 8.18,22,31), além de mais duas ocorrências no restante da Bíblia. Deus estava trabalhando em Esdras e por meio dele, e isso explica seu sucesso em seus empreendimentos.
A confiança de Esdras na ajuda de Deus foi testada quando chegou a hora de sua comitiva viajar da Babilônia a Jerusalém. “Tive vergonha”, explicou Esdras, “de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: ‘A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam’” (Ed 8.22). Para Esdras, depender de uma escolta real significava não confiar na proteção de Deus. Então, ele e sua comitiva jejuaram e oraram, em vez de buscar ajuda prática do rei (Ed 8.23). Nota: Esdras não estava seguindo nenhuma lei específica do Antigo Testamento ao escolher não receber proteção real. Em vez disso, essa decisão refletiu suas convicções pessoais sobre o que significava confiar em Deus nos desafios reais da liderança. Pode-se dizer que Esdras era um “crente idealista” nessa situação, porque estava disposto a apostar sua vida na ideia da proteção de Deus, em vez de garantir proteção com ajuda humana. Como veremos mais tarde, a posição de Esdras não foi a única considerada razoável pelos líderes piedosos nos livros de Esdras e Neemias.
A estratégia de Esdras provou ser bem-sucedida. “A mão do nosso Deus esteve sobre nós”, observou ele, “e ele nos protegeu do ataque de inimigos e assaltantes pelo caminho”. (Ed 8.31). Não sabemos, no entanto, se os membros do grupo de Esdras portavam armas ou as usavam para proteção. O texto parece sugerir que Esdras e companhia completaram sua jornada sem nenhum incidente ameaçador. Mais uma vez, o livro de Esdras mostra que os esforços humanos são bem-sucedidos quando Deus está trabalhando neles.
Os dois últimos capítulos de Esdras enfocam o problema de judeus se casando com gentios. A questão do trabalho não surge aqui, exceto no exemplo de Esdras, que exerce sua liderança em fidelidade à Lei e com determinação em oração.
Reconstruindo o muro de Jerusalém (Neemias 1.1—7.73)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro capítulo do livro de Neemias introduz o livro, mostrando que Neemias vivia em Susã, a capital do Império Persa. Quando Neemias ouviu que os muros de Jerusalém ainda continuavam derrubados, mais de meio século após a conclusão da reconstrução do templo, ele se sentou e chorou, jejuando e orando diante de Deus (Ne 1.4). Implicitamente, ele estava formulando um plano para remediar a situação em Jerusalém.
Transpondo a divisão entre sagrado e secular (Neemias 1.1—1.10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA conexão entre o templo e o muro é significativa para a teologia do trabalho. O templo pode parecer uma instituição religiosa, enquanto os muros são seculares. Mas Deus levou Neemias a trabalhar nos muros, assim como levou Esdras a trabalhar no templo. Tanto o sagrado quanto o secular eram necessários para cumprir o plano de Deus de restaurar a nação de Israel. Se os muros estavam inacabados, o templo também estava inacabado. A obra era uma peça única. A razão para isso é fácil de entender. Sem um muro, nenhuma cidade no antigo Oriente Próximo estava a salvo de bandidos, gangues e animais selvagens, mesmo que o império pudesse estar em paz. Quanto mais desenvolvida econômica e culturalmente uma cidade era, maior o valor das coisas na cidade e maior a necessidade de um muro. O templo, com suas ricas decorações, estaria particularmente em risco. Em termos práticos, sem muro não há cidade, e sem cidade não há templo.
Por outro lado, a cidade e seus muros dependem do templo como fonte da provisão de Deus para lei, governo, segurança e prosperidade. Mesmo em termos estritamente militares, o templo e os muros são mutuamente dependentes. O muro é parte integrante da proteção da cidade, assim como o templo em que habita o Senhor (Ed 1.3), que reduz a nada os planos violentos dos inimigos da cidade (Ne 4.15). Isso vale também para o governo e a justiça. As portas do muro são onde os processos judiciais são julgados (Dt 21.19; Is 29.21), enquanto, ao mesmo tempo, o Senhor, de seu templo, “defende a causa do órfão e da viúva” (Dt 10.18). A falta do templo significa ausência de Deus, e a falta da presença de Deus significa ausência de força militar, justiça, civilização e necessidade de muros. O templo e os muros estão unidos em uma sociedade fundada na “aliança e misericórdia” de Deus (Ne 1.5). Esse pelo menos é o ideal pelo qual Neemias está jejuando, orando e trabalhando.
Confiar em Deus significa recorrer à oração, tomar medidas “práticas” ou ambos? (Neemias 1.11—4.23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA última linha de Neemias 1 o identifica como “copeiro do rei” (Ne 1.11). Isso significa não apenas que ele tinha acesso direto ao rei como aquele que experimentava e servia suas bebidas, mas também que Neemias era um conselheiro de confiança e um oficial de alto escalão no Império Persa. [1] Ele poderia usar sua experiência profissional e sua posição com grande vantagem ao embarcar na obra de reconstrução do muro de Jerusalém.
Quando o rei lhe concedeu permissão para supervisionar o projeto de reconstrução, Neemias pediu cartas aos governadores por cujo território ele passaria em sua viagem a Jerusalém (Ne 2.7). Na visão de Neemias, o rei concedeu esse pedido porque “a bondosa mão de Deus estava sobre mim” (Ne 2.8). Aparentemente, Neemias não acreditava que confiar em Deus significasse que ele não deveria buscar a proteção do rei para sua jornada. Além disso, ele ficou satisfeito de ter “uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros” acompanhando-o em segurança até Jerusalém (Ne 2.9).
O texto de Neemias não sugere que houvesse algo errado com a decisão de Neemias de buscar e aceitar a proteção do rei. Na verdade, ele afirma que a bênção de Deus foi responsável por essa ajuda real. É impressionante notar como a abordagem de Neemias a esse assunto era diferente da de Esdras. Enquanto Esdras acreditava que confiar em Deus significava que ele não deveria pedir proteção real, Neemias viu a oferta de tal proteção como uma evidência da mão graciosa de Deus. Essa discordância demonstra como é fácil para pessoas piedosas chegarem a conclusões diferentes sobre o que significa confiar em Deus em sua obra. Talvez cada um estivesse simplesmente fazendo o que estava mais familiarizado. Esdras era sacerdote, familiarizado com a habitação da presença do Senhor. Neemias era copeiro do rei, familiarizado com o exercício do poder real. Tanto Esdras quanto Neemias procuravam ser fiéis em seus trabalhos. Ambos eram líderes piedosos e fervorosos. Mas eles entendiam a confiança em Deus para prover proteção de forma diferente. Para Esdras, significava viajar sem a guarda do rei. Para Neemias, significava aceitar a oferta de ajuda real como evidência da bênção de Deus.
Em várias ocasiões encontramos sinais de que Neemias era o que poderíamos chamar de “crente pragmático”. Em Neemias 2, por exemplo, Neemias pesquisou secretamente os escombros do antigo muro antes mesmo de anunciar seus planos aos moradores de Jerusalém (Ne 2.11-17). Aparentemente, ele queria saber o tamanho e o escopo do trabalho que estava assumindo antes de se comprometer publicamente a fazê-lo. No entanto, depois de explicar o propósito de sua ida a Jerusalém e apontar para a mão graciosa de Deus sobre ele, quando algumas autoridades locais zombaram dele e o acusaram, Neemias respondeu: “O Deus dos céus fará que sejamos bem-sucedidos” (Ne 2.2.20). Deus daria esse sucesso, em parte, por meio da liderança inteligente e bem informada de Neemias. O fato de o sucesso vir do Senhor não significava que Neemias pudesse sentar e relaxar. Muito pelo contrário, Neemias estava prestes a iniciar uma tarefa árdua e exigente.
Sua liderança envolveu a delegação de partes do projeto de construção dos muros a uma ampla variedade de pessoas, incluindo “o sumo sacerdote Eliasibe e os seus colegas sacerdotes” (Ne 3.1), os “homens de Tecoa”, menos seus nobres, que “não quiseram se juntar ao serviço” (Ne 3.5), “Uziel, filho de Haraías, um dos ourives” e “Hananias, um dos perfumistas” (Ne 3.8), “Salum [...], governador da outra metade do distrito de Jerusalém [e] suas filhas”(Ne 3.12), além de muitos outros. Neemias foi capaz de inspirar cooperação entre as pessoas e de organizar o projeto de forma eficaz.
Mas então, assim como na história da reconstrução do templo em Esdras, surgiu a oposição. Os líderes dos povos locais tentaram impedir o esforço judaico por meio da zombaria, mas “o povo estava totalmente dedicado ao trabalho” (Ne 4.6). Como suas palavras não impediram que o muro fosse reconstruído, os líderes locais “todos juntos planejaram atacar Jerusalém e causar confusão” (Ne 4.8).
Então, o que Neemias levou seu povo a fazer? Orar e confiar em Deus? Ou se armar para a batalha? Previsivelmente, o crente pragmático os levou a fazer as duas coisas: “oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles” (Ne 4.9). Na verdade, quando as ameaças contra os construtores de muros aumentaram, Neemias também colocou guardas em posições-chave. Ele encorajou seu povo a não desanimar por causa de seus oponentes: “Não tenham medo deles. Lembrem-se de que o Senhor é grande e temível, e lutem por seus irmãos, por seus filhos e por suas filhas, por suas mulheres e por suas casas” (Ne 4.14). Por causa de sua fé, o povo deveria lutar. Então, não muito tempo depois, Neemias acrescentou mais uma palavra de encorajamento: “Nosso Deus lutará por nós!” (Ne 4.20). No entanto, esse não foi um convite para os judeus abaixarem suas armas e se concentrarem na construção, confiando apenas na proteção sobrenatural. Em vez disso, Deus lutaria por seu povo, ajudando-o na batalha. Ele estaria trabalhando em e por meio de seu povo, enquanto eles trabalhavam.
Nós, cristãos, às vezes parecemos agir como se houvesse um muro rígido entre buscar ativamente nossa própria agenda e esperar passivamente pela ação de Deus. Estamos cientes de que essa é uma falsa dualidade, e é por isso que, por exemplo, a teologia cristã ortodoxa/histórica rejeita a premissa da Ciência Cristã de que tratamentos médicos são atos de infidelidade a Deus. No entanto, em alguns momentos, somos tentados a nos tornar passivos enquanto esperamos que Deus aja. Se você está desempregado, sim, Deus quer que você tenha um emprego. Para conseguir o emprego que Deus quer que você tenha, você precisa escrever um currículo, procurar oportunidades, candidatar-se a cargos, fazer entrevistas e ser rejeitado dezenas de vezes antes de encontrar esse emprego, assim como todo mundo precisa fazer. Se você é pai ou mãe, sim, Deus quer que você tenha prazer em criar seus filhos. Mas você ainda terá de estabelecer e impor limites, estar disponível nos momentos em que for inconveniente, discutir assuntos difíceis com eles, chorar e sofrer com eles em meio a dificuldades, ossos quebrados e corações partidos, fazer a lição de casa com eles, pedir perdão quando você está errado e lhes oferecer perdão quando falharem. Você não tem folga como recompensa por bom comportamento, como levar seus filhos à igreja. O trabalho árduo de Neemias e companhia nos alerta que confiar em Deus não equivale a ficar sentado esperando por soluções mágicas para as dificuldades que enfrentamos.
Conectando as práticas de empréstimo ao temor do Senhor (Ne 5.1-19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO projeto de Neemias para a construção dos muros foi ameaçado não apenas por elementos externos, mas também internos. Certos nobres e oficiais judeus ricos estavam aproveitando os tempos economicamente difíceis para encher seus próprios bolsos (Ne 5). Eles estavam emprestando dinheiro a outros judeus, esperando que fossem pagos juros sobre os empréstimos, embora isso fosse proibido na Lei judaica (por exemplo, Êx 22.25). [1] Quando os devedores não puderam pagar os empréstimos, eles perderam suas terras e foram forçados a vender seus filhos como escravos (Ne 5.5). Neemias respondeu exigindo que os ricos parassem de cobrar juros sobre empréstimos e devolvessem tudo o que haviam tirado de seus devedores.
Em contraste com o egoísmo daqueles que estavam se aproveitando de seus companheiros judeus, Neemias não usou sua posição de liderança para aumentar sua fortuna pessoal. “Por temer a Deus”, ele até se recusou a cobrar impostos do povo para pagar suas despesas pessoais, ao contrário de seus predecessores (Ne 5.14-16). Em vez disso, ele generosamente convidou muitos a comer em sua mesa, pagando essa despesa com suas economias pessoais, sem sobrecarregar o povo (Ne 5.17-18).
Em certo sentido, nobres e oficiais eram culpados do mesmo tipo de dualismo que acabamos de discutir. No caso deles, não estavam esperando passivamente que Deus resolvesse seus problemas. Em vez disso, estavam buscando ativamente seu próprio ganho, como se a vida econômica não tivesse nada a ver com Deus. Mas Neemias diz a eles que sua vida econômica é de extrema importância para Deus, porque Deus se preocupa com toda a sociedade, não apenas com seus aspectos religiosos: “Vocês devem andar no temor do nosso Deus para evitar a zombaria dos outros povos, os nossos inimigos [a quem os nobres forçaram a venda de devedores judeus como escravos]” (Ne 5.9). Neemias conecta uma questão econômica (usura) com o temor de Deus.
As questões de Neemias 5, embora surjam de um cenário legal e cultural distante do nosso, desafiam-nos a considerar o quanto devemos lucrar pessoalmente com nossa posição e privilégio, até mesmo com nosso trabalho. Devemos colocar nosso dinheiro em bancos que fazem empréstimos com juros? Devemos aproveitar as vantagens que nos são disponibilizadas em nosso ambiente de trabalho, mesmo que tenham um custo considerável para os outros? Os mandamentos específicos de Neemias (não cobrar juros, não executar garantias, não forçar a venda de pessoas como escravas) podem se aplicar de maneira diferente em nosso tempo, mas, por trás de seus mandamentos, há uma oração que ainda se aplica: “Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo” (Ne 5.19). Assim como foi com Neemias, o chamado de Deus para os trabalhadores de hoje é fazer tudo o que pudermos por nosso povo. Na prática, isso significa que cada um de nós tem diante de Deus o dever de cuidar da nuvem de pessoas que dependem de nosso trabalho: empregadores, colegas de trabalho, clientes, familiares, o público em geral e muitos outros. Neemias pode não nos dizer exatamente como lidar com as situações atuais no ambiente de trabalho, mas ele nos diz como orientar nossa mente à medida que tomamos decisões. Coloque as pessoas em primeiro lugar.
Neemias dá crédito a Deus (Neemias 6.1—7.73)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs problemas externos e internos que Neemias enfrentava não interromperam o trabalho no muro, que foi concluído em apenas cinquenta e dois dias (Ne 6.15). “Todas as nações vizinhas ficaram atemorizadas e com o orgulho ferido, pois perceberam que essa obra havia sido executada com a ajuda de nosso Deus” (Ne 6.16). Embora Neemias tenha exercido sua considerável liderança para inspirar e organizar os construtores, embora eles tenham trabalhado incansavelmente, e embora a sabedoria de Neemias tenha permitido afastar ataques e distrações, ele viu tudo isso como uma obra feita com a ajuda de Deus. Deus trabalhou por meio dele e de seu povo, usando seus dons e trabalho para cumprir seus propósitos.
Restauração da vida da aliança, fase dois: Esdras e Neemias juntos (Ne 8.1—13.31)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois que o muro ao redor de Jerusalém foi concluído, os israelitas se reuniram em Jerusalém para renovar sua aliança com Deus. Esdras reapareceu neste momento para ler a Lei ao povo (Ne 8.2-5). O povo chorava enquanto ouvia a lei (Ne 8.9). No entanto, Neemias os repreendeu por sua tristeza, acrescentando: “Podem sair, e comam e bebam do melhor que tiverem, e repartam com os que nada têm preparado. Este dia é consagrado ao nosso Senhor” (Ne 8.10). Por mais que o trabalho seja central para servir a Deus, a celebração também é. Nos dias santos, as pessoas devem desfrutar dos frutos de seu trabalho, bem como compartilhá-los com aqueles que não têm essas delícias.
No entanto, como Neemias 9 demonstra, também houve um tempo para a tristeza segundo Deus, quando o povo confessou seus pecados a Deus (Ne 9.2). Sua confissão veio no contexto de uma extensa recitação de todas as coisas que Deus havia feito, começando com a própria criação (Ne 9.6) e continuando ao longo dos acontecimentos cruciais do Antigo Testamento. O fracasso de Israel em ser fiel ao Senhor explicou, entre outras coisas, por que o povo escolhido de Deus era “escravo” de reis estrangeiros e por que esses reis desfrutavam dos frutos do trabalho israelita (Ne 9.36-37).
Entre as promessas feitas pelo povo ao renovar sua aliança com o Senhor estava o compromisso de honrar o sábado (Ne 10.31). Em particular, eles prometeram não fazer negócios no sábado com os povos vizinhos, que trabalhavam naquele dia. Os israelitas também prometeram cumprir sua responsabilidade de apoiar o templo e seus trabalhadores (Ne 10.31-39). Eles fariam isso dando ao templo e sua equipe uma porcentagem do fruto de seu próprio trabalho. Tanto agora como antes, o compromisso de doar uma porcentagem de nossa renda para sustentar o “serviço do templo de nosso Deus” (Ne 10.32) é um meio necessário de financiar a obra de adoração e um lembrete de que tudo o que temos vem da mão de Deus.
Depois de completar sua tarefa de construir o muro em Jerusalém e supervisionar a restauração da sociedade ali, Neemias voltou para servir ao rei Artaxerxes (Ne 13.6). Mais tarde, ele voltou a Jerusalém, onde descobriu que algumas das reformas que ele havia iniciado estavam prosperando, enquanto outras haviam sido negligenciadas. Por exemplo, ele observou algumas pessoas trabalhando no sábado (Ne 13.15). Oficiais judeus haviam permitido que comerciantes gentios levassem seus bens a Jerusalém para serem vendidos no dia de descanso (Ne 13.16). Então Neemias repreendeu aqueles que deixaram de honrar o sábado (Ne 13.7-18). Além disso, em sua abordagem tipicamente pragmática, ele fechou os portões da cidade antes do início do sábado, mantendo-os fechados até que o dia de descanso tivesse passado. Ele também colocou alguns de seus servos nos portões, para que pudessem dizer aos vendedores em potencial que saíssem (Ne 13.19).
A questão sobre se e/ou como os cristãos devem guardar o sábado não pode ser respondida por Neemias. É necessária uma discussão teológica muito mais ampla. [1] No entanto, este livro nos lembra da centralidade da guarda do sábado para o povo da primeira aliança de Deus e da ameaça representada pela interação econômica com aqueles que não honram o sábado. Em nosso próprio contexto, certamente era mais fácil para os cristãos guardarem o dia do descanso quando os shoppings estavam fechados no Dia do Senhor. No entanto, nossa cultura contemporânea de comércio 24 horas por dia nos coloca na situação de Neemias, na qual é necessária uma decisão consciente — e potencialmente custosa — sobre a guarda do sábado.
Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Ester começa com o rei Xerxes (este é seu nome grego, mas ele também é conhecido pelo nome persa Assuero) dando uma festa luxuosa para exibir sua glória (Et 1.1-8). Tendo consumido grande quantidade de vinho, Xerxes ordenou a seus servos que trouxessem a rainha Vasti diante dele, a fim de que ele pudesse exibi-la aos outros participantes da festa (Et 1.10-11). Mas Vasti, sentindo a indignidade do pedido, recusou-se a ir (Et 1.12). Sua recusa perturbou os homens presentes, que temiam que seu exemplo encorajasse outras mulheres no reino a enfrentar seus maridos (Et 1.13-18). Assim, Vasti foi “demitida”, por assim dizer, e um processo foi iniciado para encontrar uma nova rainha para Xerxes (Et 1.21—2.4). Para ficar claro, este episódio retrata um assunto de família. Mas toda família real também é um ambiente de trabalho político. Portanto, a situação de Vasti também é uma questão que se refere ao ambiente de trabalho, em que o chefe procura explorar uma mulher por causa de seu gênero e, em seguida, a demite quando ela não corresponde às fantasias dele.
Mas quem sucederia a rainha Vasti? Um concurso de beleza foi realizado para localizar as virgens mais bonitas de todas as 127 províncias da Pérsia, e Ester estava entre as que foram levadas ao palácio para passar pelo tratamento de beleza de um ano, exigido antes da apresentação ao rei. No final, Ester terminou o concurso em primeiro lugar e foi coroada como rainha. O único fato sobre ela que permaneceu oculto, a pedido de seu primo e tutor Mardoqueu, era sua origem judaica (Et 2.8-14). Mesmo aparentemente sendo a “vencedora” da disputa, ela se encontra em um sistema opressivo e sexista, e logo enfrentará a exploração sexual nas mãos de um tirano egoísta.
Embora Ester permaneça sujeita a esse sistema opressor, ela agora entra no palácio e tem acesso ao alto poder e à influência. Ela não parece interessada em saber se Deus tem algum plano ou propósito para ela ali. Na verdade, Deus nem é mencionado no livro de Ester. Mas isso não significa que Deus não tenha plano ou propósito para ela na corte de Xerxes. Por acaso, seu primo Mardoqueu, depois de algum tempo, entra em conflito com o mais alto oficial de Xerxes, Hamã (Et 3.1-6). Hamã responde planejando matar não apenas Mardoqueu, mas todo o povo judeu (Et 3.7-15). Devido à complexidade da lei dos medos e dos persas, uma vez que a aprovação do decreto foi assinada por Xerxes (sem saber que sua rainha era judia, o povo odiado por Hamã), nada poderia anular a lei.
O decreto é proclamado em várias cidades e províncias, causando a morte de muitos judeus. Quando Mardoqueu soube disso, ele se sentou à porta do rei, vestido de pano de saco e cinza. Ao saber disso, Ester envia um oficial para descobrir o que há de errado com ele, e ele responde mencionando o decreto e pedindo que ela intervenha (Et 4.1-9).
Ester protesta, dizendo que envolver-se poderia comprometer sua posição e até sua vida (Et 4.11). Ela já parece perceber que o rei está perdendo o interesse nela, pois ela não havia sido chamada à sua presença nos últimos 30 dias. É inconcebível que o rei esteja dormindo sozinho; portanto, alguma outra mulher ou mulheres eram chamadas para estar com o rei (Et 4.11). Intervir em nome de seu povo seria muito arriscado. Mardoqueu responde com dois argumentos. Primeiro, sua vida está em risco, independentemente de ela intervir ou não. “Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará, pois, se você ficar calada nesta hora, socorro e livramento surgirão de outra parte para os judeus, mas você e a família do seu pai morrerão” (Et 4.13-14a). E segundo: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14b). Juntos, esses argumentos levam a uma notável reviravolta de Ester. Mesmo tendo o título de “rainha”, ainda estava sujeita ao capricho absoluto do rei. Por isso Ester não consegue imaginar que possa fazer algo a respeito do decreto. Mas ela finalmente concorda em ir ao rei, afirmando a Mardoqueu: “Se eu tiver que morrer, morrerei” (Et 4.16). Ester precisa fazer uma escolha. Ela pode continuar a esconder sua condição de judia e passar o resto de seus dias como primeira-dama do harém de Xerxes, ou pode arriscar sua vida e fazer o possível para salvar seu povo. Ela passa a entender que sua alta posição não é apenas um privilégio a ser desfrutado, mas uma grande responsabilidade a ser usada para salvar outros. Seu povo está em perigo, e o problema deles se tornou o problema dela, porque ela está na melhor posição para fazer algo a respeito.
Observe que os dois argumentos de Mardoqueu apelam para instintos diferentes. O primeiro argumento apela à autopreservação: “Você, Ester, é judia e, se todos os judeus forem condenados à morte, você será descoberta e morta”. O segundo argumento apela ao destino, com sua sugestão de serviço divino: “Se você se pergunta, Ester, por que, de todas as jovens, acabou sendo a esposa do rei, talvez seja porque há um propósito maior em sua vida”.
Finalmente, Ester se identifica com seu povo. Nesse sentido, ela dá o mesmo passo que Jesus deu em seu nascimento, a identificação de si mesmo com a humanidade. E talvez esse passo seja o que abre seu coração para os propósitos de Deus. Identificando-se agora com o perigo mortal que ameaçava seu povo, Ester assume a tarefa de intervir junto ao rei. Ela arrisca sua posição, suas posses, sua vida. Sua alta posição agora se torna um meio de serviço ao povo, em vez de serviço pessoal. [1]
O serviço de Ester corresponde ao ambiente de trabalho de hoje de várias maneiras:
- Muitas pessoas — cristãs ou não — se veem eticamente comprometidas como resultado de seu histórico de trabalho. Como todos nos colocamos no lugar de Ester, todos temos a oportunidade — e a responsabilidade — de deixar que Deus nos use de qualquer maneira. Você trapaceou para conseguir seu emprego? No entanto, Deus pode usar você para pôr fim às práticas enganosas em seu ambiente de trabalho. Você fez uso indevido de ativos corporativos? Deus ainda pode usá-lo para arrumar registros falsificados em seu departamento. A acomodação do passado a um sistema pecaminoso não é desculpa para deixar de atender ao que Deus precisa de você agora. O mau uso anterior de suas habilidades dadas por Deus não é razão para acreditar que você não pode empregá-las para os bons propósitos de Deus hoje. Ester é o modelo para todos nós que carecemos da glória de Deus, seja por escolha ou por necessidade. Você não pode dizer: “Se você soubesse quantos desvios éticos cometi para chegar aqui... Não posso ter nenhuma utilidade para Deus agora...”.
- Deus faz uso das circunstâncias reais de nossa vida. A posição de Ester lhe dá oportunidades únicas de servir a Deus. A posição de Mardoqueu lhe dá diferentes oportunidades. Devemos abraçar as oportunidades específicas que temos. Em vez de dizer: “Se tivesse oportunidade, eu faria algo grande para Deus”, devemos dizer: “Talvez eu tenha chegado a essa posição para um momento como este”.
- Nossas posições são espiritualmente perigosas. Podemos chegar a igualar nosso valor e nossa própria existência com nossas posições. Quanto mais altas nossas posições, maior o perigo. Se tornar-se CEO, conseguir estabilidade ou manter um bom emprego se tornar tão importante a ponto de cortarmos o resto de nós mesmos, então já nos perdemos.
- Servir a Deus requer arriscar nossas posições. Se você usar sua posição para servir a Deus, poderá perder sua posição e suas perspectivas futuras. Isso é duplamente assustador se você se identificou com seu trabalho ou sua carreira. No entanto, a verdade é que nossas posições também estarão em risco se não servirmos a Deus. O caso de Ester é extremo. Ela pode ser morta se arriscar sua posição intervindo, e será morta se não intervir. Nossas posições são realmente mais seguras do que as de Ester? Não é tolice arriscar o que você não pode manter para ganhar o que não pode perder. O trabalho feito a serviço de Deus nunca pode ser verdadeiramente perdido.
Para Ester e os judeus, a história teve um final feliz. Ester corre o risco ao se aproximar do rei sem ser convidada, mas recebe seu favor (Et 5.1-2). Ela emprega uma tática inteligente para agradá-lo ao longo de dois banquetes (Et 5.4-8; 7.1-5) e para manipular Hamã a expor sua própria hipocrisia ao procurar aniquilar os judeus (Et 7.6-10). O rei emite um novo julgamento libertando os judeus do esquema de Hamã (Et 8.11-14) e recompensa Mardoqueu e Ester com riquezas, honra e poder (Et 8. 1-2; 10.1-3). Eles, por sua vez, melhoram a sorte dos judeus em todo o Império Persa (Et 10.3). Hamã e os inimigos dos judeus são massacrados (Et 7.9-10; 9.1-17). As datas da libertação dos judeus — 14 e 15 de adar — são marcadas posteriormente como a festa de Purim (Et 9.17-23).
A mão oculta de Deus e a resposta humana (Ester)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo observado anteriormente, Deus não é mencionado no livro de Ester. No entanto, o livro faz parte da Bíblia. Os comentaristas, portanto, procuram a presença velada de Deus em Ester e geralmente apontam para o versículo crucial: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14). A implicação é que ela chegou a essa posição não por sorte ou destino, nem por suas próprias artimanhas, mas pela vontade de um ator invisível. Podemos ver a caligrafia divina na parede aqui. Ester chegou à sua posição real porque “a bondosa mão de Deus estava sobre [ela]”, como Esdras e Neemias poderiam ter dito (Ed 8.18; Ne 2.18).
Isso nos desafia a refletir sobre como Deus pode estar operando de maneiras que não reconhecemos. Quando uma empresa secular elimina o preconceito em promoções e escalas salariais, Deus está trabalhando lá? Quando um cristão é capaz de acabar com a prática de registros enganosos, ele precisa anunciar que agiu assim porque é cristão? Se os cristãos têm a chance de se juntar a judeus e muçulmanos para defender acomodações religiosas razoáveis em uma corporação, eles devem ver isso como uma obra de Deus? Se você pode fazer o bem aceitando um emprego em uma administração política comprometida, Deus poderia estar chamando você para aceitar a oferta? Se você ensina em uma escola que o leva aos limites de sua consciência, deve procurar sair ou redobrar seu compromisso de ficar?
Conclusões a Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs livros de Esdras, Neemias e Ester têm várias características em comum. Todos os três são narrativas relativamente curtas sobre fatos que aconteceram durante o reinado do Império Persa. Todos os três envolvem reis persas e outros funcionários do governo. Todos os três se concentram nas atividades de judeus que buscam prosperar em um ambiente que é, de muitas maneiras, hostil ao exercício da fé em Deus. Todos os três livros testemunham o fato de que um rei persa poderia ser útil aos judeus em seu esforço para sobreviver e prosperar. Todos os três apresentam líderes-chave cujas ações são apresentadas como modelos a serem seguidos. E todos os três livros mostram pessoas trabalhando, oferecendo assim uma oportunidade para refletirmos sobre como esses livros afetam nossa compreensão do trabalho e seu relacionamento com Deus.
No entanto, todos os três livros representam uma grande diferença de opinião sobre questões cruciais. Isso é verdade até mesmo para Esdras e Neemias, que originalmente eram duas partes de um livro. Em Esdras, confiar em Deus exige que o povo de Deus viaje por território perigoso sem escolta real. Em Neemias, a oferta de uma escolta real é tida como evidência da bênção de Deus. Esdras pratica o que pode ser chamado de “fé idealista”, enquanto Neemias representa a “fé pragmática”. Em Ester, a mão de Deus está oculta, revelada principalmente no uso sagaz que Ester faz de sua inteligência e posição a serviço de seu povo. Poderíamos chamar de “fé inteligente”.
No entanto, Esdras e Neemias defendem uma visão semelhante da obra de Deus no mundo. Deus está envolvido na vida de todas as pessoas, não apenas de seus escolhidos. Deus se move no coração dos reis pagãos, levando-os a apoiar os propósitos de Deus. O Senhor inspira seu povo a dedicar seu trabalho a ele, usando uma ampla variedade de líderes fortes e vozes proféticas para cumprir seus propósitos. Em Esdras, Deus usa um sacerdote fiel para reconstruir seu templo. Em Neemias, Deus usa um leigo fiel para reconstruir os muros de sua capital. Em Ester, Deus usa um judeu profundamente comprometido para salvar o povo judeu do genocídio. Da perspectiva dos três livros, Deus está operando em todo o mundo, fazendo uso do trabalho de todos os tipos de pessoas.
Versículos e temas-chave em Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceVersículo(s) |
Tema |
Esdras 1.1 No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias, o Senhor despertou o coração de Ciro, rei da Pérsia, para redigir uma proclamação e divulgá-la em todo o seu reino, nestes termos... |
Deus está trabalhando em todo o mundo, mesmo em e por meio de um rei pagão. |
Esdras 7.28b Como a mão do Senhor, o meu Deus, esteve sobre mim, tomei coragem e reuni alguns líderes de Israel para me acompanharem. |
O trabalho humano é bem-sucedido quando Deus abençoa o trabalho. |
Esdras 8.22 Tive vergonha de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: “A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam”. |
Às vezes, confiar em Deus significa não confiar na ajuda humana. |
Neemias 2.8b-9 Visto que a bondosa mão de Deus estava sobre mim, o rei atendeu os meus pedidos. Com isso fui aos governadores do Trans-Eufrates e lhes entreguei as cartas do rei. Acompanhou-me uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros que o rei enviou comigo. |
Às vezes, confiar em Deus significa reconhecer sua provisão de ajuda humana. |
Neemias 4.9 Mas nós oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles. |
A confiança em Deus não deve levar à passividade. |
Neemias 5.19 Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo. |
A chave para determinar a coisa certa a fazer é como isso afeta as pessoas envolvidas. |
Neemias 13.19 Quando as sombras da tarde cobriram as portas de Jerusalém na véspera do sábado, ordenei que estas fossem fechadas e só fossem abertas depois que o sábado tivesse terminado. Coloquei alguns de meus homens de confiança junto às portas, para que nenhum carregamento pudesse ser introduzido no dia de sábado. |
Guardar o sábado é ordenado, mesmo quando isso coloca os crentes em desvantagem econômica. |
Ester 2.14 À tarde ela ia para lá e de manhã voltava para outra parte do harém, que ficava sob os cuidados de Saasgaz, oficial responsável pelas concubinas. Ela não voltava ao rei, a menos que dela ele se agradasse e a mandasse chamar pelo nome. |
As pessoas — especialmente as mulheres — podem se encontrar em circunstâncias econômicas em que não há uma solução completamente virtuosa. No entanto, Deus continua presente. |
Ester 4.13b Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará. |
É uma ilusão pensar que poder, posição ou riqueza nos protege dos perigos da vida. |
Ester 4.14b Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha? |
A obra de Deus entre nós às vezes é sutil e, às vezes, nem pode ser identificada especificamente. |
Ester 4.16b Se eu tiver que morrer, morrerei. |
A única maneira de servir a Deus é reconhecer que não podemos controlar os resultados de nossas ações. |